segunda-feira, 11 de maio de 2009

PRIMEIRA CARTA AO BISPO


Senhor Bispo,
Espero que esta missiva o encontre com saúde.
Tomei a liberdade de dirigir-me a Vossa Reverendíssima e logo explicarei o motivo.
Bem sei de suas incumbências, mas haverá Vossa Reverendíssima de ouvir-me, nem que seja por piedade, pela inquietação que passo. Depois, não há mais a quem recorrer só mesmo ao Bispo. Assim, como Arcebispo, Vossa Reverendíssima haverá de ter piedade.
Observei em silêncio, embora com a atenção recomendada aos homens que trabalham na área, que o Tribunal Superior Eleitoral cassou (e já nem sei se o verbo deveria ser o da cedilha) governadores, determinando a diplomação dos candidatos que ficaram em segundo lugar nas eleições.
Observei, refleti, e ainda hoje não consigo compreender como uma norma constitucional expressa pode ter negada sua eficácia por um juízo subjetivo puro. Interpretar não é substituir o que a Constituição diz, senão concretizá-la buscando dar-lhe maior eficácia. Mas isto é um assunto ao qual voltarei em breve.
Prefiro, no momento, ainda que ligeiramente, falar-lhe sobre um assunto que foi anunciado recentemente: o projeto de lei em que o eleitor poderá votar em uma lista nominal. Explico: não escolherá mais, individualmente, as pessoas em quem votar, mas nos nomes em que um dado partido escolher.
Ponho-me a relembrar que este país produziu heróis e heroínas que lutaram para que seu povo pudesse votar. Lembro-me da época em que minha geração não votada para presidente da república, para governador, para prefeito, enfim, simplesmente não votava para aqueles que definem em nome do povo (sempre ele) os destinos da nação. Inobstante essa circunstância, o fundamento republicado era o mesmo: todo poder emana do povo.
E muitos desses homens (alguns dos quais defensores desse projeto) reclamavam contra aqueles outros homens que não permitiam a livre escolha do povo (mais uma vez ele).
A sociedade mudou, o tempo passou e a Constituição de 1988 estabeleceu como fundamento o pluralismo político, com democracia representativa e participação direta nos termos estabelecidos pela Constituição.
Então, Senhor Bispo, indago-me, passando a indagar Vossa Reverendíssima, também: Acaso não é de nós que deve nascer livremente o desejo de representação? Sim, porque, se é de nós, como permitir que nos seja tirado o livre exercício do direito de votar em quem desejamos?
Confesso (e neste caso não é a Deus) mas a Vossa Reverendíssima, que não consigo compreender bem como o titular do poder pode menos do que aquele que o representa. É como se houvesse um mandato irrevogável. Com isto não concordo, por isso escrevo.
Vossa interveniência será, certamente, ao menos ouvida, já que os juristas não têm tido tempo de compreender que norma constitucional expressa não pode sofrer redução, sob pena de privar-se a Constituição de concretização pela eficácia que deve merecer em todas as suas normas.
Mais poderia argumentar, ao dizer que há fundamentos constitucionais que não podem ser ignorados, mas disso Vossa Reverendíssima é conhecedor.
Rogo a Vossa Reverendíssima que ore por mim, para que não me cale, já que calado estão aqueles que deveriam estar falando, não rosnando, como os que nem conselhos, nem exemplos podem dar.
Deus nos abençoe.

sábado, 9 de maio de 2009

NEWTON PAVÃO, arte, vida e memória


Nem sempre é fácil a tarefa de falar sobre alguém. Por mais que se tenha a intenção de produzir um depoimento imparcial o coração é um companheiro que se transforma em delator.
Neste caso, particularmente, penso que assim seja, porque falo de Newton Pavão, extraordinário artista e inigualável avô, cujo carinho legou-me lembranças que fazem encontrar no passado o referencial de futuro, como se o espelho da vida fosse um eterno companheiro.
Devo, entretanto, antes de iniciar, pontificar que a iniciativa do estimado companheiro Reis é ímpar, porque o Maranhão, a par de produzir tantos talentos, é capaz, também, de, inexplicavelmente, produzir o esquecimento de tantos outros, dando destaque a aventureiros sem compromisso com esta terra, enquanto degreda alguns de seus filhos, mesmo que dedicados a divulgar o romance que existe entre o maranhense e seus manes.
De Pavão avô posso dizer, com a brevidade imposta pelo espaço, que foi dessas pessoas ímpares, capazes de produzir indeléveis lembranças que revolvo da infância.
Hábil construtor de “jamantas” e “papagaios” que nos encantavam no céu, punha previamente no papel um projeto com formas e cores próprias, enquanto a nós netos, todos meninos, parecia ser a maior obra de engenharia, posto haver precisão técnica, com seleção apurada do material a ser utilizado. O que não entendíamos até então, porque só o tempo é capaz de operar esse milagre, é que o coração de avô era o grande segredo do equilíbrio do objeto no espaço, sendo prêmio a ele os nossos miúdos olhos e pés descalços, a correr pelo sítio “Vililma”, propriedade em que vivemos nossa infância no lugarejo Rio de São João.
Ali também tivemos nossos contatos imediatos com a natureza entres árvores diversas (e eram tantas!), que, de quando em vez, nos custaram inúmeras dores de barriga, aliviadas, sempre, pelos santos remédios da avó Nhazinha, como chamávamos vovó Georgiana. Ali participamos de inúmeros festejos de São Pedro, cujo altar era obra de Pavão, sendo a nós meninos o ponto alto a hora de degustar os doces tradicionais.
O boi foi uma presença constante em nossa infância, porque um simples “paneiro” de farinha d’água era transformado em corpo, enquanto o espírito de artista de Pavão dava-lhe alma de forma elaborada, sendo-lhe a vida os netos interpretando seus papéis previamente acordados. Esse era nosso São João, com fogos de artifício em abundância, fogueiras construídas com simetria, e modinhas acompanhadas por um violão inseparável.
Do avô muitas são as lembranças aqui repartidas, porque o coração frívolo é inconseqüente, conduzindo-nos à demorada narração. Entretanto, uma nos é muito grata: foi Pavão um dos fundadores, com os Aboud, do Moto Clube de São Luís, time de futebol de sua paixão, capaz de proporcionar, no seu aniversário, um verdadeiro conselho familiar para deliberar acerca da camisa que seria usada no Estádio Santa Izabel. Este fato, entretanto, não foi suficiente para que recebesse dessa agremiação qualquer homenagem, tornando-se, uma vez mais, verdadeira a afirmação acerca do esquecimento.
A afeição pelos netos era tamanha que transformava uma rede em navio, sendo ele o comandante, enquanto nós, todos a postos, éramos atentos marinheiros aguardando a rota, os sinais e os sons que seriam produzidos durante as suas criativas narrações.
Só uma coisa nos afastava, de certo modo, do avô Pavão: no período carnavalesco era usuário contumaz de um “fofão”, e isto nos incomodava um pouco, porque as máscaras por ele construídas, nos davam um medo desfeito apenas pelas inúmeras e insistentes explicações de mamãe. O que nós não sabíamos é que, naquele “fofão” existia uma criança!
Já na minha adolescência, quando fervilhavam as músicas de protesto, sentiu-se extasiado ao ver-me adquirir um violão. Fez-me, entretanto, apenas uma observação: “Quem usa palheta não toca; o segredo e a harmonia desse instrumento está no dedilhar.”.
Não cheguei a tornar-me violonista, mas aproveitei o conselho, sendo-me bastante, hoje, lembrar aos meus filhos as modinhas que ouvia na minha infância.
Aos dezesseis anos parti para uma jornada aventureira, então: estudar nos Estados Unidos. Foi nessa época, sem dúvida, que tive contato com o avô escritor. Muitas foram as conversas por cartas que me serviram como consolo, pela distância, mas como aprendizado, sobretudo, para quem se encontrava, sozinho, no oeste americano.
Lembro-me, particularmente, de uma carta que tratava da vida, de suas surpresas, de seus mistérios. Nela, o avô Pavão encerra a conversa dizendo: “Lembre-se: na vida há oportunidades que são únicas.”
De fato, ficou-me indelével na memória esse conselho porque pude compreender o esforço que o meu pai fizera para que eu estivesse desfrutando aquela experiência.
O avô, de quem fui aluno na Escola de Artes Plásticas, de que lhes fala o autor desta obra, é inseparável do artista Pavão, do Professor Pavão, irrequieto por essência, criativo por natureza, mas, sobretudo, humanista por excelência.
O que me reserva a memória é abundante, porque vivi com o avô Pavão experiências que a cidade permitiam, mas a oportunidade impossibilita-me rememorar, devendo o coração ser advertido de que este espaço é reservado, apenas, a um depoimento.
Esse homem que o Maranhão não soube homenagear, merece, agora, do companheiro Reis, uma lembrança que me comove: resiste ao tempo e aos homens o reconhecimento pelo artista.
O artista Pavão é um patrimônio desta terra, bem maior que a insensibilidade daqueles que se anunciam tutores das artes, bem mais real do que as abstrações coloridas que adornam os gabinetes. Isto é o que o Reis busca resgatar neste trabalho, pondo-me atônito ao ver-lhe dedicado ao passado do artista, mas feliz, ao constatar que a sensibilidade sobrevive ao tempo, buscando rememorar o homem pelos homens.
Do artista falam, com propriedade, os críticos que depõem nesta obra; do professor falam os intelectuais que com ele conviveram e conheciam suas idéias; do homem, falam todos, porque esta obra sobre um homem é para que os homens nunca se esqueçam de quem deveriam sempre lembrar; do avô falo eu, mais com o coração, é verdade, mas repleto de agradecimentos ao autor, transbordando de saudade, e constatando, uma vez mais, que “na vida há oportunidades que são únicas”. Única é a obra, única é a vida, único é o homem, mas várias foram as oportunidades para que o Maranhão homenageasse Newton Pavão.
Obrigado, companheiro Reis!