CONTITUINTE ESPECÍFICA
Assisti a proposta feita pela Presidente da República acerca
da instalação de provocação do Congresso Nacional para a convocação de um
plebiscito que instale uma Assembleia Constituinte Específica, pela qual seria
feita uma reforma política.
Com isto atenderia parte do clamor vindo das ruas e
abreviaria a realização de uma reforma política que repousa em berço esplêndido
no Congresso Nacional.
A princípio, confesso, não compreendi essa novel proposição,
pois destoante de tudo o que até hoje tenho aprendido e ensinado. Por isso,
procurarei ser objetivo e didático, evitando o uso do malsinado “juridiquês”
que me causa alergia. Meu propósito é contribuir para o debate acadêmico, por
isso escrevo de modo como visto pela doutrina.
Poder Constituinte:
Pode-se, com singeleza, dizer que é a fonte de onde se
origina o poder legítimo. Antes esse poder pairava no plano sobrenatural. Com
os ideais do que se convencionou chamar de constitucionalismo (período da
história normalmente identificado com o final do Século XVIII), a origem foi
substituída pela lei. Assim sendo, o Poder encontra na Constituição o produto
de sua expressão.
A Constituição:
A Constituição, originariamente, é sinônimo de Estado de
Direito, pois passou-se de um sistema absolutista monárquico, com fundamento
sobrenatural, a um Estado cujos fundamentos racionais produziram a lei como
fonte e limite de organização.
Sucede que Estado organizado com base em leis não é segurança
de Estado em que liberdades e garantias sejam finalidades previstas e
efetivadas.
Do embate entre o excesso legislativo e os reclamos sociais
nasceu a percepção do Estado Democrático de Direito. Era preciso mais do que
leis; era preciso leis democraticamente concebidas.
Nossa Constituição da República tem essa característica. Ela
organiza um Estado Democrático de Direito, como prevê o seu artigo 1º.
Sendo, como é, a Constituição o instrumento de configuração
do Estado ela é classificada de diversas maneiras. Aqui, pela objetividade,
adotamos apenas o critério da origem para identifica-la.
Quanto à origem a
Constituição pode ser:
Outorgada, promulgada
cesarista ou pactuada
Outorgada é a Constituição imposta por uma pessoa
(monarca, rei, imperador) ou por um grupo de pessoas que tomam o poder.
Promulgada é a Constituição democrática fruto de uma
Assembleia Constituinte.
Cesarista é a Constituição que, embora elaborada por
um ditador ou um grupo, é submetida a consulta popular.
O Poder Constituinte em
espécie:
O Poder Constituinte é doutrinariamente dividido em Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado, sendo, ainda,
este último subdividido, em Poder Constituinte
Reformador (cabe a Deputados e Senadores) e Poder
Constituinte Decorrente (cabe aos Estados), é o que prevê a Constituição da
República, artigos 1º, e seu parágrafo único e 25.
Pois bem, a Constituição da República de 1988 foi fruto de
uma Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana convocada pela Emenda
Constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985.
A nova Constituição previu que após cinco anos seria
realizado um plebiscito para escolher-se entre a forma republicana ou
monarquista e o sistema presidencialismo ou parlamentarismo, conforme artigos
2º e 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Advinda a Constituição da República e feita sua reforma após
cinco anos, só através de um procedimento de emenda constitucional pode a
Constituição da República ser modificada por um procedimento que possui regras
distintas daquele adotado para as demais leis. E é essa possibilidade de
alteração que é de competência de Deputados e Senadores.
Como uma Constituição que organiza o Estado Democrático de
Direito e atenta às exigências sociais, nossa Constituição prevê a
possibilidade de ser modificada sob determinados limites. Costumo dizer que a
Constituição prevê “quem?”, “como?” e “o
que?” pode ser alterado, uma vez que a Constituição é uma espécie de “Contrato
Social” firmado com entre todos e o Estado de Direito.
Didaticamente, tem-se, então, identificados na Constituição
da República alguns limites ao Poder de Reforma Constitucional que apresento a
seguir:
Quem?, Como? E O quê?:
(Artigo 60 da CRFB).
A Constituição da República Prevê que ela pode ser emendada
por um terço dos membro da Câmara dos
Deputados ou do Senado Federal. O Presidente da República, de mais da metade
das Assembleias Legislativas da Federação.
Diz que não pode ser emendada na vigência de intervenção
federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.
Diz, ainda, que a emenda à Constituição será promulgada pelas
Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de
ordem.
Há um conjunto de previsões que não podem ser objeto de
deliberação. É o que chamo de Núcleo Fundante, que recebe a denominação
usual de Cláusulas Pétreas.
São decisões políticas da Assembleia Nacional Constituinte de
1987, inalcançáveis pelo Poder Constituinte Derivado no seu exercício do poder
de reforma constitucional.
A esta abordagem precisa, ainda, ser trazida a proposição de
fundo a convocação de um plebiscito e a Assembleia Constituinte Específica.
O Plebiscito:
O plebiscito é uma forma de participação política do cidadão.
Sim, isto mesmo, ou você acha, como incontáveis semialfabetizados deste país,
que a participação popular se exaure com o seu voto? Claro que não!, embora nem
sempre isto seja objeto de esclarecimento.
Quando a Constituição da República afirma que “Todo poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente
nos termos desta Constituição” (conforme seu artigo 1º e parágrafo único) vincula-nos
a ler este dispositivo com a complementação do previsto no artigo 14, e seus
incisos e parágrafos.
Pois bem, é o plebiscito forma direta de participação popular
como exercício de soberania. É um direito subjetivo público do cidadão
participar das decisões políticas do governo.
De fato, o artigo 14 prevê que “A soberania popular será
exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante: I, plebiscito, referendo;
referendo...”.
Então, a quem compete a proposição da consulta plebiscitária?
A Constituição da República de 1988 não relaciona no seu
artigo 84 (Das Atribuições do Presidente da República) não prevê como
competência para o Chefe do Executivo competência para propor a convocação de
plebiscito, notadamente para o fim desejado aqui: a instituição de uma
Assembleia Nacional Constituinte.
Então, a mesma Constituição prevê (artigo 49, inciso XV) como
competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e
convocar plebiscito.
E no plano legislativo a matéria é prevista pela Lei Federal
n. 9709/1988, de 18 de novembro de 1998, cujo artigo 3º dispõe: “Nas questões de relevância nacional, de
competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso do § 3o do
art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e
o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um
terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso
Nacional, de conformidade com esta Lei”.
Assim, não é da competência da Presidente da República a
convocação do plebiscito, razão por que, neste primeiro momento, é destituído
de fundamento constitucional e legal a proposta de viés nitidamente político.
A Assembleia Constituinte Específica:
A proposição da Assembleia Nacional Constituinte Específica, nos
limites do que se conhece dela, inaugurando uma estranha figura constitucional,
não possui qualquer razoabilidade, senão um perigoso viés político para um
momento institucional e social delicado.
Ponho sob exame uma figura que poderia bem servir de
paradigma ao tema.
Imagine-se que uma Constituição previsse como formas de
alteração o processo legislativo de emendas e o golpe de estado. Uma hipótese
dessa ordem, por mais estranha que possa parecer, serve para dimensionar essa
proposição de uma Assembleia Específica.
Ora, Assembleia Constituinte não possui limite material,
precisamente porque ela inaugura uma nova ordem constitucional, o que tem o
condão de eliminar qualquer ato legislativo ou administrativo incompatível com
a ordem constitucional nova.
Então, como explicar uma Assembleia Constituinte sobre um
Estado de Direito constituído? Seria o mesmo que dizer que o Congresso Nacional
só teria competência material sobre determinados assuntos, desembocando em
visível rompimento da ordem institucional.
Isto beira um golpe sobre um dos Poderes da República,
restando, em tese, configurado crime contra a ordem institucional e quebra de
juramento constitucional prestado frente ao Congresso Nacional, de: “manter,
defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do
povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”,
conforme seu artigo 78.
Portanto, é juridicamente uma construção absurda (diz-se no “juridiquês”:,
teratológica) a proposição da Presidente da República, o que reforça o viés
exclusivamente político do anúncio.
A Reforma Política e a
Proposta de Emenda:
Não poderia deixar de registrar breve consideração sobre este tema.
Em primeiro lugar é de reconhecer que passa da hora a
necessidade de uma reforma política, cujo atraso é de inteira responsabilidade
do Congresso Nacional. Há inúmeras propostas em tramitação.
Tenho defendido a possibilidade de candidatura sem vinculação
partidária, como alternativa a uma realidade: o voto é fisiológico na sua
grande maioria; depois, os partidos políticos ou tem servido a defender
interesses individuais, com forte autoritarismo interno; demais disso, a
profusão de partidos pequenos que têm servido como legendas de aluguel.
Todos este são fatores que, somados a tantos outros, exigem
uma reforma por que é chegada a hora de o Congresso Nacional compreender que
sua falta de representatividade exala com tamanha intensidade que em momentos
desses episódios que deparamos nas ruas, possibilitam proposições dessa ordem,
com inegável viés autoritário.
É preciso responsabilidade Congressual urgente, inclusive por
que a proposição foi um alerta de que o dever constitucional não vem sendo
cumprido.
Finalmente, a Presidente da República tem competência para a
iniciativa legislativa da Proposta de Emenda Constitucional, via legislativa
prevista e que depende do Congresso, o mesmo em que há ampla maioria na base de
apoio, e que tem, no seu partido, muitas vezes, óbice de mudanças reais.
Concluo reafirmando que o sentimento constitucional é a única
alternativa para que sejam criados os Crimes contra o Estado Democrático de
Direito, através da criminalização das violações constitucionais explícitas,
implícitas e decorrentes, todas vez que houver rompimento do pacto
constitucional.