sexta-feira, 26 de novembro de 2010

UM BOM CONSELHO




UM BOM CONSELHO: EVITE O CONSELHO.

José Cláudio Pavão Santana

Doutor em Direito pela PUC-SP. Mestre em Direito pela FDR-UFPE. Professor de Direito Constitucional e Eleitoral da UFMA. Subprocurador Geral do Estado. Advogado.

Leio hoje, em “O IMPARCIAL ON LINE” que a audiência pública realizada pela Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão ontem ( 18 de novembro) teria produzido como resultado a atribuição à governadora do estado a responsabilidade de constituir uma comissão para a elaboração do anteprojeto de lei que criará o Conselho Estadual de Comunicação.

O propósito é o mesmo de outras unidades da federação e vem à baila em torno da discussão acerca da liberdade de imprensa, particularmente no que se refere ao temido processo de censura, constitucionalmente banido do território brasileiro, embora empregado de quando em vez por proprietários dos meios de comunicação em toda forma de mídia. Os exemplos sobejam em torno de renomados (e nem tanto) jornalistas suspensos ou simplesmente demitidos.

É certo que não há sociedade que dispense a regra como parâmetro de conduta, por isso mesmo sem que se possa admitir que determinados seguimentos possam estar acima da lei, embora alguns homens possam, ao menos no entendimento de um homem que um dia foi operário e que revela jamais ter compreendido a dimensão do cargo que passou ocupar. Uma lástima!

Mas também é certo que a Constituição da República estabeleceu pelo menos três pilares acerca da comunicação: legalidade, exclusão da censura e liberdade de comunicação.

De fato, ao primeiro dos princípios, apesar dos pesares, ninguém escapa. É, aliás, a grande conquista inicial do Estado de Direito: a lei como “discrimen” possível e desejado. O que lhe sucedeu foram os aperfeiçoamentos alcançados pelo Estado Constitucional de Direito.

A censura.., bem, esta é inimiga do povo brasileiro desde os períodos ditatoriais, seja da república velha, seja da república nova, e, ao que parece, da novíssima república.

Certo, contudo, é que a censura é abominável, pois impõe aos homens a mesma submissão do absolutismo monárquico, em que apenas um homem, ou um grupo, tinham acesso às informações, deliberando sobre o que e quem poderia usufruir dessa “comandita”. É esse o juízo totalitário que se ensaia, sob os auspícios de um momento de inebriada conquista (ou manutenção) do poder, que “namora” com esquizofrênicos e ditadores latinos, de fortes latidos, sujando na saída, quase sempre, quando não sujam na entrada.

Mas, e a liberdade? Como fica a liberdade de imprensa tão propalada?

Bom, a Constituição da República prevê a liberdade de manifestação, como a liberdade de propriedade dos meios de comunicação, tendo como inspiração a proteção à propriedade nacional. É uma questão de preservação da soberania. Estabelece princípios como a vedação da propaganda de guerra, como, ainda, da apologia a condutas que discrepem dos princípios democráticos que inspiram e sustentam o Estado de Direito Constitucional. Basta um passar de olhos e se compreenderá isto.

Sim, mas ao se estabelecer esse entendimento não se está a afirmar que a imprensa possa tudo em nome da liberdade, pois sua função não é construir e destruir pessoas, como às vezes (no excesso dos incautos) faz.

Temos afirmado que o direito de informação é um direito difuso, portanto, o direito à verdade dos fatos, alcançado pela narrativa que relate o acontecimento, sem acréscimos ou retoques pessoais. O subjetivo na notícia, este, sim, é opinião, e como opinião comporta-se bem num editorial, portanto, no pensamento do órgão veiculador da imprensa. Mas isto deve ser esclarecido sempre, para que não se cultive o que (infelizmente) ainda existe: os veículos “oficiais” de grupos políticos que outra causa não tem, senão o próprio interesse oligárquico.

Mas a particularidade do caso ganha ainda maior dimensão quando se vê o STF declarar não recepcionada pela atual ordem constitucional a lei de imprensa, aquela que durante muitos anos serviu à causa de processos judiciais contra jornalistas, jornais, rádios e televisões. Em outras palavras, o Excelso Pretório (usando a linguagem jurídica) disse que os crimes contra a honra devem ser tratados pelo Código Penal, condenando-se, com as vênias de estilo, a sociedade a um vácuo legislativo que se alastrará pela inércia (ou se se preferir, demora) do Congresso Nacional.

Pois bem, esse quadro, adornado por múltiplas denúncias feitas pela imprensa em geral nesses últimos anos, aceleraram um processo de regulamentação já ensaiado pelo atual governo, e cuja inibição só ocorreu em função de uma reação em cadeia das entidades representativas da sociedade.

Mas o que parecia natimorto apenas subsistiu em aparente repouso, para renascer sob a forma de conselhos estaduais de comunicação, com o propósito nominal de “fiscalizar as leis referentes às concessões públicas para rádios e TVs, distribuição das verbas destinadas ao financiamento dos meios de comunicação e difusão de banda larga e novas tecnologias para o estado”.

Ora, neste particular isto não seria competência de nenhum conselho estadual, posto cuidar de assunto de competência da União, conforme previsto pela própria Constituição da República. Portanto, é infundada (é a forma menos contundente que se encontra para afirmar) a proposição, pois em verdade, a par de invadir seara imprópria, resultará em estádio inicial para uma visível intervenção no poder de difusão dos meios de comunicação, portanto, em clara sinalização de que censura para a ser chamada de monitoramente, ou seletividade, ou controle, restando visível (para quem desejar ver) que há grave risco de recrudescer a tesoura, o lápis vermelho e os pinceis atômicos, claro, instrumentos hoje integrados aos editores de textos das máquinas que substituem as Remington, Olivetti e outras tantas.

De certo que não se quer uma imprensa irresponsável, ungida pela liberdade como se esta fosse fazer o que se deseja a qualquer título. Não há sociedade sem regras e ninguém, mas ninguém mesmo, pode estar acima delas. Portanto, para que a liberdade sobreviva é preciso que a igualdade seja tratada com responsabilidade, o que só pode ser feito se o Congresso Nacional se dispuser a elaborar uma nova lei que trate do que o Código Penal já é insuficiente para tratar: os crimes decorrentes do exercício irregular da imprensa como das reparações materiais e morais eventualmente existentes.

De sorte que a pretensão de se criar conselhos estaduais de comunicação no Brasil em tempos como o de hoje é um retrocesso abominável, pois incabível numa sociedade que caminha para consolidar sua democracia, ainda capenga, isto é claro, mas que nem por isso deve ser substituída, ou mesmo ultrajada, por iniciativas como essa que foi objeto de audiência pública ora divulgada pelo jornal “O IMPARCIAL ON LINE”.

Diz-se, coloquialmente, que se conselho fosse algo bom seria vendido. Não posso (e nem devo) dar conselhos à Sra. Governadora do Estado. O que tenho são exemplos. Estes recebi e procuro dar. Mas não deixa de ser um bom conselho dizer: Evite o conselho. A democracia agradece!

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A CONSTITUIÇÃO





A CONSTITUIÇÃO
(José Cláudio Pavão Santana)

Essa mulher bem vestida,
Com trejeitos de mocinha,
Tem as pernas tão abertas,
Que todos vem a calcinha.


Muitos querem dela usar
Como se fosse a Geni.
Abusam lá no Planalto,
Não ficam longe os daqui.


Mesmo sofrendo a coitada,
Sinto a dor do coração!
Não é mulher mal amada,
É a nossa Constituição!

domingo, 26 de setembro de 2010

A OMISSÃO DOS BONS


Artigo publicado no Jornal Pequeno, edição do dia 26 de setembro de 2010, p. 8








A OMISSÃO DOS BONS

José Cláudio Pavão Santana

Doutor em Direito do Estado - PUC-SP. Mestre em Direito pela FDR-UFPE. Professor Adjunto do DEDIR-UFMA. Membro do IBEC. Membro do IMADE. Subprocurador Geral do Estado.

Esta semana completei 34 anos de serviço (entre administrativo e professor) junto à Universidade Federal do Maranhão. A UFMA, como chamamos com carinho, com revolta, mas nunca com descaso.

A data trouxe-me à lembrança o dia da aposentadoria de meu pai na Caixa Econômica, onde trabalhou por longos anos. Fez-me compreender, finalmente, o que ele dizia: “A Caixa me deu tudo”, numa reveladora paixão, finalmente transbordada em presença dos colegas de serviço.

Esta lembrança, o tempo que por mim passou, a função de professor fizeram-me construir uma percepção de universidade diferida da que, infelizmente, muitas pessoas possuem. Vejo, por exemplo, um estranho sentimento aqui no Maranhão de que universidade é um órgão estranho ao meio. Vejo nela, em alguns setores, o infundado distanciamento da sociedade, como se não houvesse (na universidade e na sociedade) um elo indissociável. Quem hoje se senta nos bancos amanhã estará diante de outros tantos transmitindo seus conhecimentos, aperfeiçoados pelo tempo, pelas inovações teóricas e tecnológicas que surgem. E a vida continua.

Defendo, há muito, que a universidade é um cenário propulsor de conhecimento. Não lhe é permitido repetir, simplesmente. É preciso criticar, produzir, formular, construir. Infelizmente muitas vezes o criticar substitui tudo isto, e o que é pior, ganhando a única dimensão talvez visível. Edifica-se um discurso generalista e ideológico, como se um apanhado de vocábulos postos em (des) ordem, transmitissem algo além de chavões demodês, muitas vezes.

Coincidência, ou não a esta data, que me é particularmente significativa, vi por um dos canais de televisão a denúncia de um candidato acerca do uso das instalações do Campus Universitário da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, por candidatos ao governo e ao Senado da República. Tudo filmado, documentado e com repercussão, ao que pude constatar, pois logo procuraram dar uma versão ao fato, pretendendo dizer (e o que é pior) que não tinha havido o que houve e que eu não tinha visto o que vi.

Muitos são os aspectos que possibilitariam uma abordagem aqui, mas o espaço impõe-me falar apenas sobre poucos, infelizmente.

Triste do fato é que as autoridades envolvidas não conseguem dar exemplos, portanto, já não podem dar conselhos ao povo, esquecendo-se que a política possui uma função pedagógica sobretudo. Vivemos numa República, portanto, não se pode continuar com o sentimento monarquista.

Mas triste, também, no episódio, foi ver o silêncio sepulcral do corpo da UEMA. Não tive notícia de um protesto pelo corpo docente, pelo corpo administrativo, talvez pelos estudantes...? Não tive notícia! Nenhuma nota. Nada!

Tempos atrás, quando havia diálogo aberto e direto com o governo, testemunhei discursos inflamados sobre a autonomia universitária. Testemunhei insultos até sobre medidas cujo conteúdo foi demonizado. Hoje, ao ver a omissão desses líderes, volto os meus olhos ao passado e lembro de líderes que discursavam sobre o que queríamos dizer, mas éramos impedidos. Esses mesmos líderes hoje carregam consigo os ícones mais atrasados, com seus valores retrógrados e ultrapassados, os mesmos que outrora combatera.

Paro, penso nos meus 34 anos de universidade. Sinto-me feliz com o tempo. Trago à lembrança colegas de serviço, bate-papos incontáveis, aprendizados memoráveis. Só não trago na lembrança a omissão. Porque defendo a universidade comprometida com a sociedade, sem dar as costas ao seu principal cliente: o povo brasileiro.

No Maranhão assisto com pesar a falta de envolvimento do governo com a universidade, pois raras (para não dizer inexistentes) são as vezes em que vi, de forma tão direta, o envolvimento de autoridades com a UEMA. Infelizmente foi preciso um programa político para que eu assistisse esse envolvimento. E, cá pra nós, não foi da forma mais adequada. O que me dói é a omissão dos bons (como diria King) porque dos maus, bom, essa é visível, ela só não existe no palanque.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Limpar a ficha e sujar a Constituição?



No dia 6 de julho publiquei no num “site” da INTERNET (“write 4 net”) um artigo intitulado “Quatro pontos e um argumento: A ficha limpa?”. Nele abordei alguns aspectos da Lei Complementar 135/2010, que ficou conhecida como a “Lei da ficha limpa”.

Naquela oportunidade fiz considerações que julguei pertinentes, pois consentâneas com a ordem constitucional brasileira, cuja mais grave e visível instabilidade reside na ausência de formação de um sentimento constitucional, assunto ao qual tenho me dedicado há algum tempo.

A televisão, com sua forma irrefutável, trouxe a público o sentimento expresso em um milhão de assinaturas que deram suporte ao projeto de lei complementar, hoje devidamente aprovado. Tornou-se lei complementar e vige com a presunção de que desfruta qualquer norma oriunda do Estado de Direito: a legitimidade.

A lei da ficha limpa é legítima, nasceu do povo, através da manifestação colegiada passou pelo procedimento legislativo e pelo controle político de constitucionalidade. Portanto, possui legitimidade originária e presumível constitucionalidade.

O TRE do Maranhão em nota que vi veiculada em um blog local asseverou que “deixou de aplicar a Lei Complementar nº 135/2010, preferindo a aplicação do princípio da irretroatividade da Lei mais severa, em cumprimento às regras da Constituição Federal, especialmente à coisa julgada, prevista no inciso XXXVI do seu artigo 5º”. E isto em função da repercussão que tomou a notícia merecedora, alias, da crítica sempre ácida (mas nem por isso inverídica) do jornalista e cineasta Arnaldo Jabor.

Não me centro, aqui, em responder a crítica do jornalista. Com ele concordo em alguns pontos. Muito menos pretendo criticar uma decisão colegiada do TRE-MA (onde, aliás, servi por dois biênios), conquanto a cátedra me garanta esse direito, desde que reserve urbanidade à linguagem e preserve a integridade moral e intelectual de cada um dos magistrados que ali tenham assento. Não posso, contudo, permanecer silente, ao tempo em que vejo manifestações proliferarem contra a decisão do TRE-MA, como se houvesse uma verdadeira desobediência, um acinte, ou, quem sabe até, um desafio às instâncias judiciais superiors deste país.

Por isso, reproduzo o que disse na mídia eletrônica, com o desejo de contribuir para o debate.

A aprovação da Lei Complementar 135/2010 apelidada de "ficha limpa" tem merecido as mais diversas manifestações pelo país afora, mormente após as manifestações do Tribunal Superior Eleitoral em resposta às consultas que lhe foram formuladas.

Antes que se mergulhe no senso comum de dizer que quem apresentar argumentos contrários não se compraz com o sentimento nacional de moralização, desejo registrar breves considerações que me ocorrem, partindo da asserção de que sou, sim, a favor da moralização da política. Portanto, o que escrevo nada tem de oposição à "ficha limpa", mas tem tudo a ver com a Constituição da República Federativa do Brasil e a formação de um sentimento que a faça perdurar. E farei de forma direta, para que não mergulhe no "juridicêz" habitual dos operadores do Direito.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que a Lei Complementar 135/2010 (ficha limpa) atinge o processo eleitoral em cheio em curso, portanto, encontra como óbice o princípio da anualidade previsto pelo art. 16 da Constituição.

Em segundo lugar, a lei aprovada tem cláusula de vigência para o futuro, sem que possua expressa disposição de retroatividade, o que, por si só, só seria admissível com a interpretação benéfica, já que não existe norma que retroaja para prejudicar.

Em terceiro lugar, é preciso que nós tenhamos a coragem para afastar o discurso populista da vontade geral porque foram um milhão de assinaturas reunidas para a proposta legislativa.

Ora, é a Constituição que prevê as garantias contidas no princípio da segurança jurídica, no qual está a coisa julgada, razão por que a interpretação do TSE é absolutamente destituída de constitucionalidade sob essa perspectiva. Como se falar em aplicar a lei inclusive àqueles que já tiveram seus processos julgados? E àqueles que tenham perdido o mandato?

Retroagir para prejudicar, sem dúvida, foi a alternativa escolhida, estranhamente, pelo TSE.

Em quarto lugar, é preciso compreender que a reunião de um milhão de assinaturas, conquanto represente uma aspiração coletiva, se adotado como argumento, implicará na submissão da maioria pela minoria, o que significaria a ditadura imposta a maioria.

Ora, as normas que compõem o princípio da segurança jurídica estão na Constituição que foi elaborada pela Assembléia Nacional Constituinte, portanto, constituída pela maioria do colégio eleitoral do país. Como, então, submeter a maioria a um milhão de pessoas em nome de um clamor social?

É conclusivo, portanto, que a Lei Complementar 135/2010 é constitucional, mas sua aplicação para o presente pleito viola o princípio da anualidade previsto pela Constituição.

Do mesmo modo, é conclusivo que ao estabelecer efeitos retroativos à norma o TSE ultrapassou o limite que lhe é reservado pela própria Constituição e pelo próprio Código Eleitoral, pois suas Resoluções são ato-regra, espécie de norma que difere da lei. E ao estabelecer efeito retroativo não previsto na própria Lei Complementar de modo direto e inequívoco o TSE violou a Constituição.

Por último, e não menos importante, é digno de registro que a comoção geral não possui força capaz de afastar a decisão fundamental da Assembléia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição.

Uma Constituição ou se altera pelo devido processo legislativo ou nunca se terá consolidado um sentimento constitucional.

Como disse, não responderia às criticas no editorial do jornalista, pois muito do que disse procede. Nem criticaria o TRE-MA. Este, ao contrário, saudou a Constituição como quem desejasse despertar toda uma gente para a formação do sentimento constitucional.

Tomara que outros tribunais tenham a mesma postura, pois todos queremos representação política limpa, mas não se pode sujar as regras constitucionais como forma de agradar um discurso político midiático.


Artigo publicado no Jornal O Imparcial, de 1/08/2010, p. 5.

segunda-feira, 29 de março de 2010

A DEMOCRACIA FRACASSOU OU FRACASSARAM ELES?




A democracia fracassou ou fracassaram eles?


José Cláudio Pavão Santana

“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”

Winston Churchill

A implementação da democracia no Brasil (ou restauração, se preferirem) custou caro, embora o esquecimento sugira ter batido às portas da classe política brasileira, cujos membros, em razoável maioria, parecem não ter se importado com esse custo.

O Brasil teve nominalmente várias “repúblicas”. Algumas rupturas políticas conseguiram edificar um novo momento, como se a simples instauração formal tivesse o condão de modificar os homens.

Ora, não há democracia que resista à insensibilidade humana. Com os políticos que detém mandato não seria diferente. Refiro-me àqueles que detém mandatos pois políticos somos todos, para lembrar que o “o homem é, por natureza, um animal político”. Mas há políticos, politiqueiros e politicalhas, parafraseando uma obra de Benedito Buzar, cuja desorganização de minhas mudanças de endereço impedem citar com precisão, mas o crédito é dele.

O caos social que o Estado do Maranhão vive, e podemos falar dele quando abrimos os jornais locais, mesmo os alinhados ao governo, demonstram a cada notícia que muito há por fazer e que o jogo do poder simplesmente não consegue permitir.

O Maranhão é terra do “não faço e não deixo fazer!”, pois cada passo ou é dado com o pires na mãos e uma toalha bordada de reverências, ou nada é possível. E o pior disso é que essa prática tem contaminado pessoas jovens, que não suportam ser contrariadas.

A luta pela democracia parece que instaurou nas pessoas uma sensação de que o regime político não possui regras. Faz-se o que se quer, como se liberdade fosse o único princípio existente.

A imprensa reclama liberdade, mas o excesso permitido pelos jornalistas que moderam os comentários dos seus blogs acaso contribui para a democracia? Expressão e integridade são dois valores eleitos pela Constituição como bens tutelados, por isso mesmo não se deve confundir expressão de opinião com achincalhe, detratação e xingamentos.

Para que não se fique aí a Universidade, também, possui suas mazelas. Basta criticar-se uma postura administrativa para que se propalem discursos inflamados pelo desvirtuamento, como se houvesse uma aura que impeça a crítica, sobretudo quando ela é destituída de propósitos pessoais, pois voltadas à construção, ou reconstrução, como no caso da Universidade Federal do Maranhão.

A democracia exige zelo, cuidado, portanto, pois ela é como a noiva que espera do seu consorte o melhor dos tratamentos. Deseja ser amada, merecedora de caricias, lembrada sempre, não admitindo que uma terceira pessoa entre na relação, porque aí a cosia fica brava.

Pois bem, a democracia parece que encontrou nos políticos (e não os nomino aqui porque faltaria espaço) verdadeiros cafetões. Alguns dela se servem para os palanques a cada quatro anos. Outros delas se servem para intermediar favores pessoais ou partidários, outros com ela só flertam, pois no fundo a detestam e não seria razoável publicamente revelar-se infiel a ela. Mas há o pior. Há os que com ela só “ficam”, com o desejo fugaz de quem não quer compromisso. A estes o povo não passa de um detalhe.

A cada esquina que passo em São Luís, em cada sinal que cruzo me deparo com uma legião de pedintes, uns ameaçadores até, quase sempre armados, portanto substâncias tóxicas, sabe-se lá como e onde adquiridas.

Quando chamo à memória meu tempo de universitário, época em que não podíamos ler determinados jornais, ou conversar sobre determinados assuntos, sinto que nossa angústia de outrora pela falta de democracia desembocou em mãos erradas.

Não tenho saudades da ditadura, porque nenhuma se justifica, nem mesmo as constitucionais, como encontrado nos estudos de Carl Schimitt. Tenho saudade, sim, de compromissos assumidos, jurados a cada quatro anos, de cumprir a Constituição da República.

A democracia, como se infere de Winston Churchil, continua sendo o melhor dos regimes. A nossa precisa é de maior eficácia na responsabilização dos agentes políticos, como, por exemplo, acabando com o foro privilegiado, estancando as diferenças entre pessoas estimuladas até mesmo pelo “mandatário-maior” da nação, instituindo-se a possibilidade de candidatura avulsa ou adotando-se o sistema de “recall” do Direito Americano.

A democracia não fracassou, mas eles, com o perfil sedimentado num monarquismo absolutista, fracassaram, constatação que desemboca em saber se eles verdadeiramente merecem a denominação de políticos, como Aristóteles propôs, ou se não passam de politiqueiros ou politicalhas.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Eram os franceses corsários?




Eram os franceses corsários?

José Cláudio Pavão Santana*

O Maranhão tem papel exponencial na história do Brasil. Diria mesmo que na história do mundo, dada as circunstâncias que envolvem a exploração francesa na costa das terras que passaram a ser chamadas de Brasil. É que bem antes de 1500 há registros da atividade mercantil e de exploração que alguns atribuem a corsários.

Corsários eram aventureiros, para alguns piratas. De qualquer modo eram homens que se aventuravam pelo norte desta terra, até mesmo por que a França insistia em ignorar o Tratado das Tordesilhas. Vasco Mariz[1] destaca que:

“Só em 1533 um bispo francês, Jean lê Vemeur de Tilliers, obtém de Clemente VII, um Médicis, declaração dizendo que aquelas bulas só se referiam aos continentes já conhecidos e não às terras ainda por descobrir por outras coroas. Ficou famoso o protesto do rei Francisco I em 1537, durante a visita dos embaixadores de Carlos V, pedindo-lhes para ver as cláusulas do testamento de Adão que o excluíam da partilha do mundo.”

Sobre o assunto o professor Mário Martins Meirelles[2] é fonte obrigatória.

A história consigna que:

“Os ingleses contestaram a validade de Tordesilhas e praticam a pirataria oficial como corsários”[3].

O estado é outro. Reconquistado pelos portugueses, infelizmente não conseguiu ir além dos casarões que consignam sua origem lusitana. E até isto está em risco, a considerar como se encontra a Praia Grande, conjunto arquitetônico dos maiores da América Latina. Uma pena, pois a “coroa” cresceu, virou república, é sinônimo de desenvolvimento, enquanto a vila faz questão de se manter colônia. Colônia na prática política, com os mesmos fidalgos de sempre, servidos pelos asseclas submissos, dispostos a ajoelharem-se pelas migalhas que sobram da mesa farta.

Os piores índices sociais do Brasil, falta de perspectiva social, educação precária, falta de saúde, insegurança visível, pode-se afirmar sem titubear que a capital é um problema a cada esquina. O Estado um continente que possui vários Haitis.

Esse caos, é bom que se diga, é resultado da mais longeva dominação política brasileira. Acho que só Fidel Castro concorra com esse quadro. E isto é péssimo, na medida em que o poder deixa de ser prática e passa a ser vício.

O Maranhão contemporâneo fracassou. Aos 53 anos de idade constato isso.

Vi nascer uma esperança de geração que me prometeu um futuro diferente. Era menino quando soube disso. Cresci e hoje deparo-me com a indiferença, a falta de perspectiva de famílias inteiras.

Considero-me exceção. Sou privilegiado, pois tive um pai que me deu a oportunidade de estudar em colégio particular. Estudei no exterior. Consegui sair daqui para o mestrado e depois para o doutorado. Quantos colegas tiveram essas oportunidades? Quantos maranhenses puderam fazer isso? Poucos, claro.

E o pior disso é que muitas vezes fazer sucesso é sinônimo de intolerância, pois é prática local o maniqueísmo peculiar às ditaduras. Ou se está de um lado ou se está do outro. Por isso, com uma certa dose de irreverência, costumo dizer que não tenho lado, pois quem tem lado é melancia: o lado de dentro e o lado de fora. Mas tenho, sim, convicção, posição e desejo de melhorar a sociedade que vejo se esvair a cada dia.

É natural que algumas pessoas perguntem o que faço para retribuir o investimento que a universidade fez em mim, considerando que estudei em universidade pública. Pois bem, tenho feito minha parte.

Há mais de duas décadas leciono na UFMA. Lá iniciei a trabalhar como agente administrativo há 34 anos. É lá onde ensino Direito Constitucional, Eleitoral e TGD. É lá onde procuro ensinar o valor da Constituição e dos direitos civis em geral. É como defensor da liberdade de manifestação que estimulo jovens a terem o senso crítico capaz de questionar as ações políticas em geral. É pouco? Mais do que muita gente tem feito tanto tempo no poder!

É inevitável um registro. Nesta terra, sem perspectivas e envolta com incontáveis problemas, banalizou-se a violência, sendo já motivo de exclamação dizer que nunca foi assaltado. Pois eu passei a integrar o conjunto de maranhenses sem assistência. Fui assaltado, humilhado com uma arma de fogo. Meu filho foi seqüestrado, refém de bandidos com pouco mais de vinte anos. Somos cidadãos. Somos órfãos de políticas públicas, notadamente de segurança pública, fato visível a cada sinal que se para na cidade, nos guetos que se formam.

O Maranhão, a cada governo, tem duas caras. Uma, que é a realidade fria e crua. Outra, maquiada pela força da mídia que moldura um faz-de-conta que impõe ao homem rude e de poucas letras a impressão de que chegamos a um estado de paz social e desenvolvimento desejáveis, corroborado pelo assistencialismo incrustado na mente obtusa, retrógrada e esperta dos “políticos” (entre aspas mesmo) do Maranhão.

Dito isto eu me pergunto: Eram os franceses corsários? Ou corsários são piratas? O tempo dirá!



* Doutor em Direito do Estado pela PUCSP. Mestre em Direito pela FDR_UFPE. Professor Adjunto de Direito Constitucional da UFMA. Professor dos cursos de Pós-Graduação da UFMA. Membro efetivo do IBEC. Membro efetivo da AMLJ.

[1] MARIZ, Vasco. La Ravardière e a França Equinocial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007, p. 17.

[2] História do Maranhão. São Paulo: Siciliano, 2001, p. 39. O autor trata como parte do anedotário, dizendo de forma textual: "Conta o anedotário da história que Francisco I, de França, em face das bulas dividindo o mundo a descobrir entre Espanha e Portugal, teria dito gostar de conhecer a cláusula testamentária de Adão que excluída, em benefício dessas duas coroas, os demais príncipes cristãos.”. MARIZ, Vasco, ob. cit., p. 17 – por nós citado no item “O fato histórico” – dá ao acontecimento veracidade histórica.

[3] KARNAL, Leandro et ali. História dos Estados Unidos: das origens ao século xxi. São Paulo: Contexto, 2007, p. 39.

sábado, 20 de março de 2010

ASSALTADO. E AGORA?

Sou mais um, de inúmeros brasileiros, assaltados. Mas eu não sou um brasileiro qualquer. Sou um brasileiro, maranhense, que teve um filho sequestrado, sem que a polícia nunca tivesse encontrado os sequestradores e, agora, foi, literalmente, foi ASSALTADO.
Acho a concorrência desleal, afinal, tenho sido assaltado durante muito tempo pelos políticos do Maranhão.
Se falasse de cada assalto terminaria ano que vem.
Mas o que quero dizer é que fui assaltado.
Inerte, de mãos na cabeça, refém de dois meninos (bandidos, é claro) fui assaltado.
Eu me pergunto, então. Por que eu, que não roubo ninguém, não sou político, não tenho pai político, compro as coisas à prestação?
Por que logo eu, funcionário público? Assalariado?
Aqui no Maranhão é assim. Ou se está com Sarney ou se está com Jackson!
Eu me pergunto, então: E quem está comigo?
Fui assaltado. Sou refém de uma sociedade que tem contradições curiosas. Enquanto eu sou assaltado o saite da família Sarney noticia que o filho do Secretario de Segurança dirigia um carro a mais de 200 km.
Eu me pergunto, então: O que estará errado? Eu, refém da (in) segurança pública do Maranhão, ou o bandido, que resolveu concorrer com a classe política?
Talvez a resposta esteja no próximo assalto. Deus permita que eu continue vivo!

terça-feira, 16 de março de 2010

ELES NÃO SABEM O QUE FAZEM!




Sob o título "Palestina. Paz, sim. Apartheid, não, o ex presidente Jimmy Carter examina com acuidade as causas que envolvem o diálogo entre Israel e a Palestina. É um belo livro, inobstante os protestos (e foram muitos) nos Estados Unidos e em Israel, para ficarmos aí.
Estive lá. vi com os meus olhos o muro, como vi também a constante vigilância militar.
Não sei se essa paz chegará, mas vi homens humilhados, temerosos, com um nó na garganta, esquivando-se de qualquer pergunta feita sobre Arafat, ícone que passei a admirar desde o dia em que vi o célebre discurso do ramo de oliveira.
Hospedei-me em Belém e de um lado para o outro do muro exibi passaporte, como vi o guia descer em Jerusalém, pois não podia ter acesso a Belém, como também a Jericó.
É uma terra linda, onde a emoção está em cada centímetro de chão.
O terreno é árido, mas as pedras são símbolos que permeiam cada monumento visitado, como elemento fundamental e simbólico das construções. Umas milenares, outras não.
Por que será, então, que o personagem principal dessa terra não pode ser atendido? Ele só pediu que os homens se amassem como a si próprios uns aos outros.
Desejo, sinceramente, que haja a paz naquela terra. Só não sei como o Brasil se legitimaria como intermediário com esse estranho amor por ditaduras, como Cuba, Venezuela e Colômbia, ou pelo radicalismo, como o do Irã.
Pai, eles (no Brasil) não sabem o que fazem! Aliás, eles nem sabem o que dizem.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A CRIMINALIZAÇÃO DAS VIOLAÇÕES A PRECEITOS CONSTITUCIONAIS EXPRESSOS





A criminalização das violações a preceitos constitucionais (expressos, implícitos e decorrentes.)

José Cláudio Pavão Santana*

1. Introdução. 2. Constituição: sentimento e consciência. 3. Postulados e preceitos. 4. A Constituição de 1988. 5. A criminalização das violações a preceitos constitucionais expresso, implícito e decorrentes. 6. Conclusões.

1. INTRODUÇÃO:

Desejo, inicialmente, registrar meus sinceros agradecimentos pelo convite da Escola Superior de Advocacia e da OAB para proferir-lhes esta conferência. É com imensa satisfação que divido minhas aflições e expectativas em torno de assunto tão apaixonante, particularmente em momento da história em que instituições fundamentais para a estabilidade democrática do país travam embates que exigem serenidade, antes de tudo.

Falar sobre a Constituição nesses seus vinte anos é diferente de falar da Constituição. No primeiro caso (nesta oportunidade) é concitar à reflexão para que sejam aperfeiçoadas as decisões políticas fundamentais (lembrando Carl Schmmitt). No segundo caso é criticar o pacto firmado entre governantes e governados, muitas vezes sob a influência da força midiática, que necessita, sim, de uma advertência em face de sua postura diante de fatos que avaliaremos aqui, ainda quando isto desagrade alguns que se arvoram como porta-vozes exclusivos da difusão informativa, ou deformativa, dependendo da perspectiva que se contemple o problema.

É verdade que não existe democracia sem liberdade de imprensa, mas também é verdade que notícia não se confunde com opinião de conglomerados, sendo írrita (ao menos para mim) a tentativa de pautar administrações, posturas, política, enfim, a sociedade.

Pretendo falar-lhes de tema que é inovador sob a perspectiva aqui abordada. Não falo de quimeras, mas do propósito de ver efetivada a Norma Fundamental além do discurso acadêmico contraposto ao quotidiano forense.

Falarei sobre a criminalização das violações aos preceitos constitucionais expressos, implícitos e decorrentes como fundamental para a preservação do Estado Democrático de Direito. Considerarei o suporte objetivo vigente como instrumentos de salvaguarda do Estado, a necessidade de mudança do foco dessa legislação e a necessidade de responsabilização dos agentes públicos (nesse conceito incluídas todas as autoridades, indistintamente). Abordarei a necessidade de formação do sentimento constitucional como pano de fundo. Falarei, também, sobre a necessidade de ponderação sobre preceitos, desejando estabelecer como conclusão a necessidade de sedimentação do compromisso constitucional compatibilizando discurso e aplicação de modo a alcançar a efetiva concretização da Constituição.

2. CONSTITUIÇÃO, SENTIMENTO E CONSCIÊNCIA:

Inicio por falar-lhes em sentimento e consciência.

A compreensão de qualquer elemento do conhecimento passa pelo processo de apreensão, reflexão (conquanto nesse estádio possa ocorrer de forma intuitiva), ponderação (que pode se confundir com o estádio anterior) e, finalmente, a consciência. Como se vê consciência é certeza consolidada por um sentimento.

Não podemos ignorar que a interpretação instrumentaliza a concretização da Constituição. Mas não se pode esvaziar o processo interpretativo do conteúdo político que materializa a Norma Fundamental. Toda Constituição (penso eu) é formalmente jurídica e substancialmente política. Essa dimensão política de que falo é “[...] calcada numa ideologia, que, porém, não deve ser a ideologia particular do intérprete, mas sim aquela em que se baseia a própria Constituição”[1].

Há incontáveis casos na realidade forense local que desafiam este entendimento, alguns dos quais transformados em notícia antes mesmo de publicado o correspondente acórdão. Mas não se mede o Direito pelo equívoco.

A consolidação do sentimento constitucional não se dá, meus caros, pela manifestação desvinculada de parâmetros científicos, pois as normas de interpretação são precedidas por postulados que dão a direção para inspiração do intérprete. Autoridade, meus senhores, não possui vontade, possui cometimento.

O discurso constitucional ou é feito com consciência ou todos nós estaremos fadados a destruir aquilo que levou anos, vidas e sonhos para ser edificado: o Estado Democrático de Direito.

É precisamente sobre isto que desejo conversar com vocês todos. Não se pode falar em Constituição como norma de etiqueta. Constituição é pacto que impõe atenção, obediência, respeito. Quem não pode dar exemplos não pode dar conselhos forjados no discurso destituído de fundamento. Aconselhar requer compreender, refletir, sentir. Sentir é muito mais do que rebuscar em linguagem o que foi escrito para o povo, aquele que deve merecer do autor da decisão a explicação, a fundamentação, jamais a amargura do temor. Autoridade é para merecer respeito, nunca para ser temida.

Nada é mais significativo no estudo do Direito Constitucional do que a compreensão do que venha a ser Constituição. Dela fala-se sob diversos matizes. Quanto a seu conteúdo, quanto a sua forma, quanto a sua alteração, enfim, são inúmeras (e a cada dia aparecem novas classificações) as perspectivas que permitem estudá-la. Certo é que as discussões são muitas, embora, concretamente, aqui e acolá nos deparemos com o rompimento entre a Constituição e o discurso constitucional

Foi a partir dessa constatação que chegamos à proposição que dá epígrafe a este escrito: Examinar o discurso e as nuances que o envolvem.

É preciso sentir a Constituição.

O sentimento constitucional já mereceu a atenção de autores como Karl Loewenstein e Pablo Lucas Verdu dentre tantos outros, servindo-nos de fomento a uma discussão que nos ocupa a partir de duas perspectivas que desejo abordar. Uma diz respeito à necessidade de difusão do documento fundamental como instrumento de suporte ao conhecimento do mesmo. O outro diz respeito à compatibilização das idéias de completude, complementação e estabilidade como pilares de edificação do próprio sentimento que retroalimenta o sistema constitucional. Isto, claramente significa: a) maciça publicidade da Constituição como documento fundamental; b) equacionar transformação e estabilidade constitucional.

Essa perspectiva sentimental (permitam-me assim denominá-la) é extensiva ao fenômeno do constitucionalismo, uma vez que Constituição nada mais é do que expressão de sentimento desenhada na vontade real, na decisão fundamental ou na expressão normativa. Pode, também, envolver todas essas perspectivas que, somadas, conduzem a uma visão eclética (ou culturalista para alguns), pois contendo um elemento de cada uma dessas visões do que seja uma Constituição.

Sendo assim, a Constituição precisa ser apreendida como um elemento vinculante, cuja existência é resultado da composição da idéia de constitucionalismo como processo de recolhimento de ideais, reflexões e manifestações, não necessariamente circunscrito ao século XVIII.

Nossa terra tem mais do que palmeiras e sabiás! Ela contribuiu decisivamente para a formação do constitucionalismo na América na figura das Leis Fundamentais do Maranhão de 1612. Mas isto é uma outra história.

Constituição é sistema incompleto que necessita de retro-alimentação através de inserções que permitam o aperfeiçoamento, sem, contudo pôr em risco sua integridade. O processo constituinte é contínuo e nele reside, também, o poder de desconstituição inerente ao poder constituinte derivado, sujeito, evidentemente, aos limites materiais e formais doutrinariamente construídos. Portanto, Constituição implica em estabilidade pela preservação de seus fundamentos, conjugada a um processo constituinte regular que tenha como finalidade o aperfeiçoamento, sempre.

Ocorre que sob o discurso transformador pode residir a ideologia da instabilidade institucional, vale dizer: quando pior melhor. Desse modo, o processo constituinte, antes de ser instrumento de consolidação passa a desempenhar papel de algoz, pondo em xeque o sentimento constitucional, que desembocará no enfraquecimento da valoração da Norma Fundamental.

Sentimento constitucional é o convencimento consciente de que o pacto fundamental é imprescindível, daí por que Loewnstein é preciso ao advertir que são as “...reformas constitucionais empreendidas por razões oportunistas para facilitar a gestão política desvaloriza o sentimento constitucional”[2] que põem em risco a sedimentação do sentimento.

Sentimento é resultado de valoração, portanto, estabilidade constitucional é processo que não pode ser confinado apenas ao poder constituinte representativo, mas se estende a todos os destinatários da Constituição. Outra razão não há para o ensino dos valores, símbolos e história na sociedade norte americana.

Isto, alias, é o objetivo da regra contida no artigo 13, § 1º da Constituição da República: “São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais”.

A Constituição do Brasil tem sistematicamente sido alvo de alterações num processo que denominamos de “ordinarização material”, cenário próprio para o enfraquecimento do sentimento constitucional.

A “ordinarização material” é o sentimento legislativo de mudar a Constituição em momentos próximos, conquanto formalmente seja obedecido o processo constituinte especial. Muda-se por causa da exigência do capital internacional; construindo-se a idéia de flexibilização, ora abrandando-se a norma constitucional, ora simplesmente rotulando-se o processo de desconstitucionalização de direitos, tudo em nome da conveniência governamental.

O aperfeiçoamento constitucional, que se dá pelo processo legislativo ou jurisdicional, não pode descuidar, todavia, de observância que se edifica fora da própria Constituição. É no constitucionalismo onde vamos pinçar os elementos que servem que modelo para o intérprete. Falamos dos postulados constitucionais e preceitos fundamentais..

3. POSTULADOS E PRECEITOS:

É sobre a dimensão de ambos que se pode falar em concretização da Constituição, na busca da efetivação de algumas normas constitucionais.

Postulados são enunciados que dão sentido às constituições como elementos supra-constitucional. Não se pode compreender Constituição sem observância dos mesmos. São elementos fora do texto constitucional expresso, mas que dão dimensão e densidade à Constituição. São fundantes como normas (“lato sensu”). Não se circunscrevem à dimensão hermenêutica, conquanto para a interpretação sejam fundamentais.

A idéia de preceito, por sua vez, “[...] está acirradamente ligada àquilo que regula a conduta [...] “[3]. É, portanto, fonte norteadora, vinculante, indisponível. André Tavares[4] fala em preceito fundamental como “[...] categoria autônoma formada por princípios e por regras constitucionais [...] atribuindo-lhes (aos preceitos) “[...] expressão direta das idéias fundamentais do ordenamento jurídico, não podem deixar de ser consideradas como fontes imediatas das demais normas.”[5].

Vale o alerta. Fundamentos, preceitos e princípios são, de quando em vez, relacionados de forma indistinta. Preferimos reuni-los no Gênero norma, identificada pela especificidade que possui diante da Constituição.

Relacionamos como postulados, dentre outros, a supremacia da constituição, a unidade da constituição, maior efetividade das normas, harmonização ou cedência recíproca.

Fique claro: São os postulados que dão a dimensão dos preceitos. Aqueles são obtidos pela teoria da formação do constitucionalismo. Estes (os preceitos) são declarações eleitas pelo constituinte como “chaves-mestras” da Constituição, reveladores da vontade constituinte originária. São informativos do sistema constitucional, podendo ser relacionados: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, livre iniciativa e pluralismo político.

Demais disso podemos relacionar: “princípio republicano (art. 1o, caput), princípio da separação dos Poderes (art. 2o), princípio do presidencialista (art. 76), princípio da legalidade (art. 5o, II), princípio da liberdade (art. 5o, IV, VI, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII etc), princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 50, XXXV), princípio da autonomia das entidades federadas (arts. 1o e 18), princípio do juiz e do promotor natural (art. 5o, XXXVII e LIII), princípio do devido processo legal (art. 5o, LV), princípio da publicidadde dos atos processuais (Arts. 5o, LX e 93, IX), princípio da legalidade administrativa (art. 37, caput), princípio da ocupação dos cargos públicos através de concurso público (art. 37, II), princípio da prestação de contas (arts. 70, parágrafo único, 34, VII, d, e 35, III), princípio da independência funcional da Magistratura (arts. 95 e 96), princípio da capacidade contributiva (art. 145, III), princípio da defesa do consumidor (art. 170, IV), princípio da autonomia universitária (art. 170) etc”[6].

Vejamos, então, algumas reflexões acera da Constituição de 1988.

4. A CONSTITUÇÃO DE 1988:

A Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1/1969, submeteu a ordem jurídica a mecanismos artificiais de controle, dentre os quais o ideológico, através dos instrumentos que asseguravam eficácia à Lei de Segurança Nacional, via que pavimentava a “legitimação” (ponho a palavra entre aspas) para a instauração de averiguações (os Inquéritos Policiais Militares) aos quais eram submetidos todos aqueles que se insurgissem contra o sistema político vigente.

Trouxe consigo, ainda, do Direito Italiano, o decreto-lei, como instrumento que suprimiu, em grande parte, a ação ordinária do Congresso Nacional.

Para o tema proposto é fundamental mencionar a Lei n. 4.898, de 9 de dezembro de 1965 que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade.

A Constituição daquela época, com roupagem formal precisa, deve-se reconhecer, escorreita, consignava a decisão política fundamental daqueles tempos sombrios. Nesse particular não foge à regra do poder constituinte derivado em cada momento histórico. Havia um sentimento contido pela força das armas.

E hoje, haveria um sentimento contido pela força da lei? Que Estado possuímos? Estado de Lei ou Estado de Direito? Estado de Medidas Provisórias?

Falou-se, durante a resistência, que a Constituição seria uma colcha de retalhos, porque a Constituição de 1967, com a Emenda n. 1/1969, era uma apanágio de disposições cuja concepção dava ênfase à organização do Estado (artigo 8o) e tratava dos Direitos e Garantias só a partir do artigo 153, como era o caso do mandado de segurança.

Hoje os Direitos e Garantias Fundamentais estão consignados de forma meramente exemplificativa, já a partir do artigo 5o, enquanto a organização do Estado ocorre somente a partir do artigo 18. Mas a Constituição continua merecendo a alcunha de colcha de retalhos, porque ao pretender atender a todos, não conseguiria contemplar ninguém.

Haverá nisso alguma sinalização ainda não compreendida? Por que a discussão sobre a Constituição conduz a incertezas geradas pelo descompasso entre retórica e aplicação? O que nos falta para compreender sua dimensão material superior e fundante além do plano formal?

O que será que aprendemos nesses vinte anos que nos possa servir de acalento e de esperança?

No Século XVIII Montesquieu[7] (Capítulo XI) pontificava que:

“O Estado pode transformar-se de duas maneiras: ou porque a constituição é corrigida, ou porque ela se corrompe. Se o Estado conservou seus princípios, e a constituição se modifica, isto quer dizer que esta última se corrige; se o Estado perdeu seus princípios e a constituição vem a ser modificada, isto acontece porque esta se corrompe.”

A lição nunca foi tão atual, sobretudo diante do freqüente entendimento do Poder Judiciário de que o Estado (leia-se: Executivo) é responsável por tudo, como se a teoria da tirpartição separasse, faticamente, o poder.

Ora, falar de uma Constituição que se concretize democraticamente exige, antes de tudo, rememorar que o primado da democracia é a regra (prefiro norma). Não há democracia sem regras, e por isto mesmo é que a elas todos, indistintamente, estão vinculados.

Conquanto se fale, freqüentemente, em abertura de interpretação constitucional, é impositivo observar que livre-convencimento, autonomia funcional, autonomia administrativa, liberdade, discricionariedade não são categorias que se moldem pela vontade mais pessoal da autoridade, dos homens, enfim.

Tenho a Constituição em dimensão mais do que formal. Falo-lhes de pacto, pois não consigo compreender a Constituição senão por esse viés. Ela é um pacto compromissário, de essência humanitária, com natureza política e forma jurídica. É assim que a vejo, é assim que a sinto.

Já bem antes disso, todos sabemos, a “Magna Charta de João Sem Terra”, inobstante sua extensão limitada, consignava preceitos que serviram de inspiração às normas que fundamentaram a sociedade moderna.

A Constituição, ora como documento sociológico, com a conjugação de anseio popular e instrumento formal (Lassalle), ou como resultado de uma decisão política fundamental (Schmmitt), ou, ainda, como instrumento jurídico (Kelsen), convergiu para o consenso, que é um documento com propósitos orgânicos fundados não mais no sobrenatural, mas na racionalidade.

Constituição é sinônimo de compromisso, de convergência, não de unanimidade, nem de uniformidade, mas de núcleo de vontades democraticamente representadas, como, aliás, no caso da Constituição da República, o diz o parágrafo único do artigo 1º.

Com base nesse perfil de representatividade a Constituição de 1988 inaugurou um cenário de ampliação de direitos e garantias jamais visto na história do Brasil. São setenta e oito incisos e quatro parágrafos só no artigo 5º da Constituição de 1988. Desses dispositivos são derivadas inúmeras outras previsões que pretendem a efetivação da Constituição.

Ocorre que não se pode construir a efetividade sem que se tenha consciência dos pilares em que edificada a Norma Fundamental.

Nossa Constituição é concebida sobre os fundamentos da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. São princípios, compreendidos dentro de sua dimensão substancial, como verdades, valores, ideais, convencimentos eleitos como viga de uma estrutura. Sem ela (a estrutura) desaba o edifício constitucional. São princípios constitucionais fundamentais, não apenas princípios gerais de direito constitucional, como bem destaca José Afonso da Silva[8]:

“Os primeiros integram o direito constitucional positivo, traduzindo-se em normas fundamentais, normas-síntese ou normas-matrizes [...] os princípios gerais formam temas de uma teoria geral do direito constitucional, por envolverem conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional”.

Em breve síntese dessa concepção poderíamos dizer que nada pode ser concretizado em termos de dispositivos constitucionais sem que haja transitado por essa estrutura. Vale dizer: não há sociedade livre e justa sem respeito à dignidade da pessoa humana. E é precisamente com ênfase na falta de respeito à dignidade da pessoa humana que construo estas idéias.

Ser digno é ter não apenas o direito, mas o acesso aos meios de produção de um Estado (refiro-me ao Brasil), a sua riqueza mais expressiva que é a potencialidade de produzir para seu próprio povo. Nisto não está nenhum gesto de clausura, isolamento ou de xenofobismo, mas uma prioridade que precisa ser abraçada pelos dirigentes deste país: ou há o compromisso de livrar esta sociedade ou não haverá sociedade para ser libertada, senão beligerantes em constante conflito civil, com o risco de desenvolverem-se os discursos ideológicos que são capazes de farta produção, inclusive de teratologias jurídicas esfuziantes.

Quando assistimos a segregação de pessoas em locais em que as políticas públicas são ineficientes, para não dizer inexistentes, é sinal que o Estado está ameaçado de ser substituído pelos grupos marginais que aterrorizam a sociedade.

A violência, então, passa a ganhar dimensões insuportáveis. Não apenas a violência física, cotidiana e incompatível com a integridade física e moral, mas a violência legal.

O Estado Legal, primeira fase do denominado Estado Constitucional, possui sua importância na história da civilização. Do absolutismo monárquico, com fundamentos teocêntricos, passou-se ao estado das leis, como produto do racionalismo iluminista, mas desembocou-se no Estado Social como alternativa ao legalismo opressor.

A lei nasceu para libertar, embora nesse objetivo oprima com sua força cogente, num mecanismo de limitação de espectros individuais em nome da vontade geral. Legislar, aplicar a lei e interpreta-la, contudo, não se divorciam da necessidade de observar a dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana não prescinde da solidariedade, objetivo da República, como prevê o artigo 3º da Constituição.

Ora, como se pode compreender uma Constituição efetivada sem amparo nas mais incipientes regras que a compõem? Como suportar-se um julgamento midiático (o chamado tribunal da mídia) cotidiano, com linchamentos morais irreparáveis? Em nome do direito de informação ou da liberdade de expressão? Em nome de interesses econômicos ou políticos sutilmente inseridos em disputas regionais da Federação? Que ponderação de interesses será possível para dirimir esses conflitos?

Recuso-me a aceitar esse tipo de compreensão, de indiferença com a restrição ilegal da liberdade, com a conivência com o abuso de autoridade em quaisquer de suas formas, de arrogância quanto às aflições mais latentes.

A efetivação constitucional reside em apreender, compreender, desejar, cumprir e exigir o cumprimento da Constituição como um instrumento comum, sem as reservas de direitos a classes, senão aquelas especificamente necessárias e taxativas ao exercício de uma função. Isto é sentir a Constituição, tê-la por necessária, preservar-lhe a integridade em cada instante da vida cotidiana.

Fala-se muito em impunidade decorrente de um procedimento penal ultrapassado, cheio de regras e desvios que tornam o tempo o maior inimigo da sociedade. É quando surge o discurso de ruptura com o sistema, através de alternativas inseridas em soluções construídas em juízos singulares. Pensa-se, com isto, que se está a fazer justiça.

Lembro que o regime político das sociedades contemporâneas é representativo. Isto nos diz nossa Constituição. Assim, a cada “solução mágica” (entre aspas mesmo) tem-se a substituição de mais de seiscentos congressistas, eleitos pelo povo, por um único juízo que, sem nenhum critério legal, ou com base na deformada interpretação dele, passa a legislar individualmente, confundindo o justificar o Direito com o justiçar a sociedade. Ser juiz, promotor, advogado, delegado, enfim, operador do direito, não é ser justiceiro.

Uma sociedade nesses moldes é o retrocesso, a volta à barbárie. Aflições são condições humanas que merecem e devem ser solucionadas com critérios objetivos, com as normas contratadas, mas com forte dose de sensibilidade, jamais pelo subjetivismo arrogante.

A deformidade da lei está na consciência dos homens, não bastando o tempo para torná-la inadequada. Fosse assim e a concepção do “habeas corpus” seria desnecessária, pois remonta à própria “Magna Charta de João Sem Terra”.

Entendo que a aflição de nós cidadãos tem guarida, também, na ausência de conhecimento do texto constitucional, sem que sequer percebamos isto. Justifico este entendimento.

Desde o advento desta Constituição de 1988 tem-se regra expressa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (artigo 64) com o seguinte teor:

“A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração pública direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil”

Quantos lembram desta regra? Qual a sua densidade jurídico-política para o fenômeno da valoração constitucional e conseguinte construção do sentimento constitucional?

Não pretendo com isto comparar esta disposição constitucional com aquela ficção jurídica da Lei de Introdução ao Código Civil, que veda o desconhecimento da lei, mas desejo, sim, firmar como entendimento que a Constituição necessita ser incluída como matéria a ser estudada em todos os níveis da educação formal e informal. Este seria o primeiro momento de formação da consciência constitucional que estabelece a noção de sentimento constitucional.

Portanto, não basta ter-se a norma, sem que sua dimensão seja compreendida e cumprida por todos. A partir daí, então, o valor da Constituição assume seu lugar de destaque, uma vez que o sentimento constitucional estará sedimentado na noção de que se trata de um instrumento essencial para o cotidiano.

Mas, e quando o indivíduo tem por dever de ofício conhecer a lei? Quando esse indivíduo é uma autoridade que presta compromisso solene de cumpri-la? Notem bem. Não falei em prometer cumprir a Constituição. Falei em a autoridade jurar cumpri-la. É o que passo a considerar agora.

5. CRIMINALIZAÇÃO DAS VIOLAÇÕES CONSTITUCIONAIS EXPRESSAS, IMPLÍCITAS E DECORRENTES:

Poderia iniciar o tópico já afirmando que a criminalização das violações constitucionais é incompatível com os postulados de liberdade de que fala a Constituição Cidadã, para usar a retórica do sempre lembrado Ulysses Guimarães. Mas não é.

No Brasil de hoje ainda vige a Lei n. 4898/1965 que fala em punição civil, criminal e administrativa de autoridade pela prática de abuso de poder. Mencionada lei, durante todo esse tempo, só sofreu uma alteração. Foi através da Lei n. 7960/1989, que inseriu dispositivo para considerar crime a ausência de expedição em tempo oportuno ou de cumprir de forma imediata a ordem de liberdade.

A lei (4898/1965) considera expressamente como autoridade quem exerça cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que de forma transitória. É uma visão clara (pelo menos no âmbito formal) de que não é permitida a flexibilização da categoria AUTORIDADE, como ocorre na dimensão doutrinária (logo adotada pela jurisprudencial) do que seja agente político, público, administrativo etc.

Quando um policial excede do seu poder, violou a Constituição tanto quando um criminoso aponta uma arma ao cidadão indefeso. Quando um juiz sentencia com o desejo de beneficiar, infundadamente, uma das partes, equipara-se ao delinqüente, ao justiceiro, pois todos violam uma norma comum: a Norma Fundamental.

Desejo ratificar a todos aqui presentes que o Estado das Leis é o Estado da aflição, sempre que a sua existência vilipendiar a dignidade da pessoa humana.

Mas como fundamento constitucional só através da lei é que se pode edificar mecanismos que permitam fiscalizar esses desvios. Por isso o projeto de lei de autoridade do deputado Jungmann cuja justificativa é forjada nos seguintes pressupostos: “A Lei n. 4898, de 9 de dezembro de 1965, relativa ao abuso de autoridade está defasada. Precisa ser repensada, em especial, para melhor proteger os direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição de 1988 (mais rica no particular do que a Constituição de 1946, vigente quando da promulgação da Lei n. 48 98, de 1965). Bem assim para que se possam tornar efetivas as sanções destinadas a coibir e punir o abuso de autoridade”.

O projeto pretende que seja crime a prática, a omissão e o retardamento, no exercício da função pública, em razão dela ou a pretexto de exercê-la, com o intuito de impedir, embaraçar ou prejudicar o gozo de qualquer dos direitos e garantias fundamentais constantes do Titulo II da Constituição. O projeto atualiza a tipificação de condutas.

Na seara processual o projeto possibilita que o ofendido ou o seu representante legal acompanhem, ou assumam, o processo administrativo ou judicial, se houver negligência das autoridades competentes quanto à observância dos prazos.

O projeto, também, adota o mecanismo da defesa prévia da autoridade, a exemplo do processo de improbidade administrativa, apra evitar as promoções temerárias.

As penas são readequadas à realidade. Passam de quatro a oito anos de prisão e multa equivalente a 24 meses de salário da autoridade, enquanto a atual lei prevê apenas a penas de até seis meses de prisão.

Não restam dúvidas que o projeto avança no que diz respeito à proteção dos direitos e garantias fundamentais, preservando, ou procurando preservar o catálogo de direitos.

Mas minha proposta é por que não ser considerada a conduta crime contra o Estado Democrático de Direito? Por que centrá-lo na figura do abuso de autoridade?

Talvez possa parecer que a adoção de crime contra o Estado se assemelhe à figura da Lei de Segurança Nacional, instrumento que aterrorizava todos que lutassem contra o estado de exceção. Mas não se confunde com aquela lei.

A proposta que faço é de que a violação a expressos preceitos catalogados pela Constituição (e aí residiriam os preceitos constitucionais expressos, implícitos, porque dedutíveis e decorrentes de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil) serem tipificadas como crime contra o Estado Democrático de Direito, com penas superiores àquelas propostas no projeto do deputado, uma vez que se tratam de atos que não configurariam apenas abuso diante de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, mas verdadeira conduta atentatória contra o Estado Democrático de Direito. Pretendo, portanto, é a instituição de salvaguarda em favor do Estado Democrático de Direito, acima do qual nenhuma autoridade pode se pôr.

A criminalização dá ênfase ao compromisso jurado na assunção do “munus” público, seja o profissional advogado, juiz, promotor, delegado, defensor, enfim, detenha a mínima fatia de responsabilidade pública e haverá de possuir responsabilização pela prática de crime contra o Estado Democrático de Direito. Essa é uma forma de, pedagogicamente, atribuir à autoridade constituída a consciência de que a Constituição, embora trace normas de conduta, pois delineia preceitos, não é uma norma de etiqueta, pois não pode ser afastada pelo desejo individual.

A justificativa desta proposição não é incompatível com a proposta aqui considerada. Ao contrário, complementa o desejo de consolidar os postulados constitucionais que resolvo denominar de ética republicana.

6. CONCLUSÕES:

Devo concluir.

Democracia não é fazer tudo o que se quer, posto existir a ética da democracia do bem comum, o que não se reduz, necessariamente, ao espectro meramente majoritário. Maioria sem respeito às minorias é opressão. Portanto, democracia contém ordem. República é forma.

Sendo assim, a idéia de fundamento corresponde à idéia de base, de alicerce sobre o qual repousa todo um conjunto de preceitos que transitam primeiro pela sua fonte para, só então, mergulhar no ordenamento jurídico infraconstitucional.

Pensando assim, é preciso ter em mente que a percepção do que a Constituição contém como fundamento encontra na recente alteração constitucional (Emenda 45/2004) a exigência, mais do que nunca de atenção às novas fontes que deverão ser objeto de estudo. Refiro-me aos dispositivos inseridos no artigo 5o, quais sejam, o inciso LXXVIII e os parágrafos 3o e 4o do artigo 5o da Constituição da República.

Com a Emenda 45/2004 os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos passaram a desfrutar de destaque ainda maior, alçando a natureza de emendas constitucionais, portanto, ampliando as cláusulas pétreas previstas pelo artigo 60 da Constituição da República. Desde que sejam aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Tal situação possibilitou a ocorrência de quatro correntes interpretativas acerca da hierarquia constitucional, conforme entendimento de Flávia Piovisan[9]: hierarquia supraconstitucional dos tratados, hierarquia constitucional, hierarquia infraconstitucional, mas supralegal e paridade hierárquica entre tratado e lei federal.

Penso que os tratados internacionais até aqui ratificados para que alcancem na nova ordem “status” de emenda constitucional, terão que passar pelo procedimento legislativo das emendas. Relembro o Pacto de San Jose da Costa Rica.

O Brasil passou a se submeter, por previsão constitucional, à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. Essa norma guarda certo descompasso com a idéia de soberania, mercê da expressão “se submete”. Soberania tem natureza excludente, na medida em que importa em desconhecer qualquer outra vontade política superior.

Dimitri Dimolius[10] sustenta com acerto que “os textos constitucionais não se limitam a transmitir comandos, mas estão repletos de elementos simbólicos. Veiculam ideologias, crenças e sentimentos, estabelecem orientações políticas e elaboram formas de pensamento e ação”.

Sendo assim, como compatibilizar a submissão do Brasil a Tribunal Penal Internacional se a Constituição tem como fundamento republicano a soberania?

Com mais propriedade as constituições de Portugal e da França falam em poder aceitar (Portugal), poder reconhecer (França) a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. O Brasil já pelo ADCT (artigo 7o) propunha a luta pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.

O Tribunal Penal Internacional tem como norma fundamental o Estatuto de Roma, que contém diversas normas que se contrapõem a preceitos-garantias constantes da atual Constituição da República, sem falar em normas penais extravagantes em vigor. Lembro a pena de prisão perpétua e a entrega de qualquer pessoa procurada. Como dissipar esse conflito? Como assegurar essa força fundamental da Constituição no Estado Democrático de Direito?

Por certo a força fundamental da Constituição está na sua concepção democrática e pluralista, encerrando um conceito de Estado Democrático de Direito segundo o qual as minorias tem ressalvados os seus direitos e a democracia perde sua conotação meramente numérica na expressão.

Ferdinand Lassale, no clássico “A essência da Constituição” defendeu que as questões constitucionais não são questões jurídicas, mas questões políticas, pois encerram fatores reais de poder. Com sua “A Força Normativa da Constituição”, Konrad Hesse pretendeu ponderar que o embate entre esses fatores reais e a Constituição não torna esta a parte mais fraca.

Nós pretendemos aqui defender que essa força, mais do que normativa simplesmente, é fundamental, na medida em que transcende os elementos realizáveis de que fala Hesse, pois tem base compromissária na aceitação democrática e geral da sociedade.

Portanto, é na Constituição, vontade geral, de onde se origina a fonte do Direto no Estado Democrático, não por recurso retórico ou estilístico, mas porque a norma-compromisso reproduz esse pacto baseado em elementos fundamentais da República.

Violar essas disposições quando se tem o “munus” de preservar a ordem constitucional encerra, em nosso sentir, um verdadeiro crime contra o Estado Democrático de Direito, e deve ser assim tratado, pois o catálogo de preceitos fundamentais transcende, hoje, o corpo normativo legislativo de um Estado, já que o Direito Constitucional dos Povos é uma realidade que ganha dimensão comunitária

O sentimento constitucional conquanto se instaure no plano subjetivo, não prescinde de objetividade que lhe dê consistência, até porque só se pode compreender como sentimento aquilo que se compraz com algo efetivamente amadurecido. Não se confunda sentimento (elemento que já reúne consistência) com sensação, o mais incipiente e elementar momento do sentir.

Que seja viva a Constituição para que a democracia não morra.


* Doutor em Direito do Estado (Direito Constitucional) PUCSP. Mestre em Direito pela FDR – UFPE. Professor Adjunto IV do DEDIR – UFMA. Procurador Geral do Estado. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.

[1] Willis Santiago Guerra Filho, Processo constitucional e direitos fundamentais. Apud Fabrício Muraro Novais, in Lições de direito constitucional: em homenagem ao jurista Celso Bastos. Coord. Ives Gandra Martins, Gilmar Ferreira Mendes e André Ramos Tavares. São Paulo: Saraiva, 2005, p.80.

[2] Teoría de la constitucion. Barcelona: Editora Ariel S. A. 1986, p. 200. Tradução nossa.

[3] André Ramos Tavres. Curso de direito constitucional, de acordo com a Emenda constitucional 48/2005. São Paulo: Saravai, 2006, 3a edição revista e atualizada, p. 115.

[4] Ob. cit., p. 122.

[5] Ibidem.

[6] Uadi Lamego Bulos. Curso de direito constitucional. Atualizado até a Emenda 53, de 19/12/2006. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 238.

[7]Do espírito das leis. São Paulo: Ed. Martins Claret, 2004, p. 181.

[8] Comentário contextual à constituição. 3ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional 53, de 19.12.2006. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 29/30.

[9] Reforma do judiciário e direitos humanos, in A reforma do judiciário analisada e comentada. TAVARES, André Ramos et ali. São Paulo: Editora Método, 2005, pp. 67/81.

[10] O art. 4o, § 4o da CF: Dois retrocessos políticos e um fracasso normativo, in A reforma do judiciário analisada e comentada. TAVARES, André Ramos et ali. São Paulo: Editora Método, 2005, pp. 107/119.