20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
(IV Jornada Jurídica da PGEMA)
José Cláudio Pavão Santana*
1. Introdução. 2. Constituição: sentimento e consciência. 3. Postulados e preceitos. 4. A Constituição de 1988. 5. A criminalização das violações a preceitos constitucionais expresso, implícito e decorrentes. 6. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO:
O tema que me coube nesta IV Jornada Jurídica da Procuradoria Geral do Estado do Maranhão é os 20 anos da Constituição Cidadã.
Vários outros eventos mais prestigiosos foram e ainda serão realizados no Brasil como mémória deste acontecimento fundamental para a construção do Estado Democrático de Direito. O nosso guarda uma singularidade. É neste evento em que são normalmente apresentadas as questões que permeiam a defesa do Erário, muitas vezes alvo de verdadeiras aventuras arquitetadas.
É com imensa satisfação que divido minhas aflições e expectativas em torno de assunto tão apaixonante, particularmente em momento da história em que instituições fundamentais para a estabilidade democrática do país travam embates que exigem serenidade, antes de tudo.
Falar sobre a Constituição nesses seus vinte anos é diferente de falar da Constituição. No primeiro caso (nesta oportunidade) é concitar à reflexão para que sejam aperfeiçoadas as decisões políticas fundamentais (lembrando Carl Schmmitt). No segundo caso é criticar o pacto firmado entre governantes e governados, muitas vezes sob a influência da força midiática.
É verdade que não existe democracia sem liberdade de imprensa, mas também é verdade que notícia não se confunde com opinião de conglomerados, sendo írrita (ao menos para mim) a tentativa de pautar administrações, posturas, política, enfim, a sociedade.
Muitos poderiam ser as abordagens em torno de um tema tão amplo. Defender a Constituição por sua dimensão material jamais vista na história. Pode-se criticá-la, por sua frustrante débilidade eficacial. Contudo, uma vertente é inegável: Sua importântica para a construção do Estado Democrático de Direito como instrumento efetivo de concretiação do pacto democrático.
Falarei sobre a criminalização das violações aos preceitos constitucionais expressos, implícitos e decorrentes como fundamental para a preservação do Estado Democrático de Direito. Considerarei o suporte objetivo vigente como instrumentos de salvaguarda do Estado, a necessidade de mudança do foco dessa legislação e a necessidade de responsabilização dos agentes públicos (nesse conceito incluídas todas as autoridades, indistintamente). Abordarei a necessidade de formação do sentimento constitucional como pano de fundo. Falarei, também, sobre a necessidade de ponderação sobre preceitos, desejando estabelecer como conclusão a necessidade de sedimentação do compromisso constitucional compatibilizando discurso e aplicação de modo a alcançar a efetiva concretização da Constituição.
2. CONSTITUIÇÃO, SENTIMENTO E CONSCIÊNCIA:
Inicio por falar-lhes em sentimento e consciência.
A compreensão de qualquer elemento do conhecimento passa pelo processo de apreensão, reflexão (conquanto nesse estádio possa ocorrer de forma intuitiva), ponderação (que pode se confundir com o estádio anterior) e, finalmente, a consciência. Como se vê consciência é certeza consolidada por um sentimento.
Não podemos ignorar que a interpretação instrumentaliza a concretização da Constituição. Mas não se pode esvaziar o processo interpretativo do conteúdo político que materializa a Norma Fundamental. Toda Constituição (penso eu) é formalmente jurídica e substancialmente política. Essa dimensão política de que falo é “[...] calcada numa ideologia, que, porém, não deve ser a ideologia particular do intérprete, mas sim aquela em que se baseia a própria Constituição” .
Há incontáveis casos na realidade forense que desafiam este entendimento, alguns dos quais transformados em notícia antes mesmo de publicado o correspondente acórdão. Mas não se mede o Direito pelo equívoco.
A consolidação do sentimento constitucional não se dá, meus caros, pela manifestação desvinculada de parâmetros científicos, pois as normas de interpretação são precedidas por postulados que dão a direção para inspiração do intérprete. Autoridade, meus senhores, não possui vontade, possui cometimento.
O discurso constitucional ou é feito com consciência ou todos nós estaremos fadados a destruir aquilo que levou anos, vidas e sonhos para ser edificado: o Estado Democrático de Direito.
É precisamente sobre isto que desejo conversar com vocês todos. Não se pode falar em Constituição como norma de etiqueta. Constituição é pacto que impõe atenção, obediência, respeito. Quem não pode dar exemplos não pode dar conselhos forjados no discurso destituído de fundamento. Aconselhar requer compreender, refletir, sentir. Sentir é muito mais do que rebuscar em linguagem o que foi escrito para o povo, aquele que deve merecer do autor da decisão a explicação, a fundamentação, jamais a amargura do temor. Autoridade é para merecer respeito, nunca para ser temida.
Nada é mais significativo no estudo do Direito Constitucional do que a compreensão do que venha a ser Constituição. Dela fala-se sob diversos matizes. Quanto a seu conteúdo, quanto a sua forma, quanto a sua alteração, enfim, são inúmeras (e a cada dia aparecem novas classificações) as perspectivas que permitem estudá-la. Certo é que as discussões são muitas, embora, concretamente, aqui e acolá nos deparemos com o rompimento entre a Constituição e o discurso constitucional
Foi a partir dessa constatação que chegamos à proposição que dá epígrafe a este escrito: Examinar o discurso e as nuances que o envolvem.
É preciso sentir a Constituição.
O sentimento constitucional já mereceu a atenção de autores como Karl Loewenstein e Pablo Lucas Verdu dentre tantos outros, servindo-nos de fomento a uma discussão que nos ocupa a partir de duas perspectivas que desejo abordar. Uma diz respeito à necessidade de difusão do documento fundamental como instrumento de suporte ao conhecimento do mesmo. O outro diz respeito à compatibilização das idéias de completude, complementação e estabilidade como pilares de edificação do próprio sentimento que retroalimenta o sistema constitucional. Isto, claramente significa: a) maciça publicidade da Constituição como documento fundamental; b) equacionar transformação e estabilidade constitucional.
Essa perspectiva sentimental (permitam-me assim denominá-la) é extensiva ao fenômeno do constitucionalismo, uma vez que Constituição nada mais é do que expressão de sentimento desenhada na vontade real, na decisão fundamental ou na expressão normativa. Pode, também, envolver todas essas perspectivas que, somadas, conduzem a uma visão eclética (ou culturalista para alguns), pois contendo um elemento de cada uma dessas visões do que seja uma Constituição.
Sendo assim, a Constituição precisa ser apreendida como um elemento vinculante, cuja existência é resultado da composição da idéia de constitucionalismo como processo de recolhimento de ideais, reflexões e manifestações, não necessariamente circunscrito ao século XVIII.
Nossa terra tem mais do que palmeiras e sabiás! Ela contribuiu decisivamente para a formação do constitucionalismo na América na figura das Leis Fundamentais do Maranhão de 1612. Mas isto é uma outra história.
Constituição é sistema incompleto que necessita de retro-alimentação através de inserções que permitam o aperfeiçoamento, sem, contudo pôr em risco sua integridade. O processo constituinte é contínuo e nele reside, também, o poder de desconstituição inerente ao poder constituinte derivado, sujeito, evidentemente, aos limites materiais e formais doutrinariamente construídos. Portanto, Constituição implica em estabilidade pela preservação de seus fundamentos, conjugada a um processo constituinte regular que tenha como finalidade o aperfeiçoamento, sempre.
Ocorre que sob o discurso transformador pode residir a ideologia da instabilidade institucional, vale dizer: quando pior melhor. Desse modo, o processo constituinte, antes de ser instrumento de consolidação passa a desempenhar papel de algoz, pondo em xeque o sentimento constitucional, que desembocará no enfraquecimento da valoração da Norma Fundamental.
Sentimento constitucional é o convencimento consciente de que o pacto fundamental é imprescindível, daí por que Loewnstein é preciso ao advertir que são as “...reformas constitucionais empreendidas por razões oportunistas para facilitar a gestão política desvaloriza o sentimento constitucional” que põem em risco a sedimentação do sentimento.
Sentimento é resultado de valoração, portanto, estabilidade constitucional é processo que não pode ser confinado apenas ao poder constituinte representativo, mas se estende a todos os destinatários da Constituição. Outra razão não há para o ensino dos valores, símbolos e história na sociedade norte americana.
Isto, alias, é o objetivo da regra contida no artigo 13, § 1º da Constituição da República: “São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais”.
A Constituição do Brasil tem sistematicamente sido alvo de alterações num processo que denominamos de “ordinarização material”, cenário próprio para o enfraquecimento do sentimento constitucional.
A “ordinarização material” é o sentimento legislativo de mudar a Constituição em momentos próximos, conquanto formalmente seja obedecido o processo constituinte especial. Muda-se por causa da exigência do capital internacional; construindo-se a idéia de flexibilização, ora abrandando-se a norma constitucional, ora simplesmente rotulando-se o processo de desconstitucionalização de direitos, tudo em nome da conveniência governamental.
O aperfeiçoamento constitucional, que se dá pelo processo legislativo ou jurisdicional, não pode descuidar, todavia, de observância que se edifica fora da própria Constituição. É no constitucionalismo onde vamos pinçar os elementos que servem que modelo para o intérprete. Falamos dos postulados constitucionais e preceitos fundamentais..
3. POSTULADOS E PRECEITOS:
É sobre a dimensão de ambos que se pode falar em concretização da Constituição, na busca da efetivação de algumas normas constitucionais.
Postulados são enunciados que dão sentido às constituições como elementos supra-constitucional. Não se pode compreender Constituição sem observância dos mesmos. São elementos fora do texto constitucional expresso, mas que dão dimensão e densidade à Constituição. São fundantes como normas (“lato sensu”). Não se circunscrevem à dimensão hermenêutica, conquanto para a interpretação sejam fundamentais.
A idéia de preceito, por sua vez, “[...] está acirradamente ligada àquilo que regula a conduta [...] “ . É, portanto, fonte norteadora, vinculante, indisponível. André Tavares fala em preceito fundamental como “[...] categoria autônoma formada por princípios e por regras constitucionais [...] atribuindo-lhes (aos preceitos) “[...] expressão direta das idéias fundamentais do ordenamento jurídico, não podem deixar de ser consideradas como fontes imediatas das demais normas.” .
Vale o alerta. Fundamentos, preceitos e princípios são, de quando em vez, relacionados de forma indistinta. Preferimos reuni-los no Gênero norma, identificada pela especificidade que possui diante da Constituição.
Relacionamos como postulados, dentre outros, a supremacia da constituição, a unidade da constituição, maior efetividade das normas, harmonização ou cedência recíproca.
Fique claro: São os postulados que dão a dimensão dos preceitos. Aqueles são obtidos pela teoria da formação do constitucionalismo. Estes (os preceitos) são declarações eleitas pelo constituinte como “chaves-mestras” da Constituição, reveladores da vontade constituinte originária. São informativos do sistema constitucional, podendo ser relacionados: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, livre iniciativa e pluralismo político.
Demais disso podemos relacionar: “princípio republicano (art. 1o, caput), princípio da separação dos Poderes (art. 2o), princípio do presidencialista (art. 76), princípio da legalidade (art. 5o, II), princípio da liberdade (art. 5o, IV, VI, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII etc), princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 50, XXXV), princípio da autonomia das entidades federadas (arts. 1o e 18), princípio do juiz e do promotor natural (art. 5o, XXXVII e LIII), princípio do devido processo legal (art. 5o, LV), princípio da publicidadde dos atos processuais (Arts. 5o, LX e 93, IX), princípio da legalidade administrativa (art. 37, caput), princípio da ocupação dos cargos públicos através de concurso público (art. 37, II), princípio da prestação de contas (arts. 70, parágrafo único, 34, VII, d, e 35, III), princípio da independência funcional da Magistratura (arts. 95 e 96), princípio da capacidade contributiva (art. 145, III), princípio da defesa do consumidor (art. 170, IV), princípio da autonomia universitária (art. 170) etc” .
Vejamos, então, algumas reflexões acera da Constituição de 1988.
4. A CONSTITUÇÃO DE 1988:
A Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1/1969, submeteu a ordem jurídica a mecanismos artificiais de controle, dentre os quais o ideológico, através dos instrumentos que asseguravam eficácia à Lei de Segurança Nacional, via que pavimentava a “legitimação” (ponho a palavra entre aspas) para a instauração de averiguações (os Inquéritos Policiais Militares) aos quais eram submetidos todos aqueles que se insurgissem contra o sistema político vigente.
Trouxe consigo, ainda, do Direito Italiano, o decreto-lei, como instrumento que suprimiu, em grande parte, a ação ordinária do Congresso Nacional.
Para o tema proposto é fundamental mencionar a Lei n. 4.898, de 9 de dezembro de 1965 que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade.
A Constituição daquela época, com roupagem formal precisa, deve-se reconhecer, escorreita, consignava a decisão política fundamental daqueles tempos sombrios. Nesse particular não foge à regra do poder constituinte derivado em cada momento histórico. Havia um sentimento contido pela força das armas.
E hoje, haveria um sentimento contido pela força da lei? Que Estado possuímos? Estado de Lei ou Estado de Direito? Estado de Medidas Provisórias?
Falou-se, durante a resistência, que a Constituição seria uma colcha de retalhos, porque a Constituição de 1967, com a Emenda n. 1/1969, era uma apanágio de disposições cuja concepção dava ênfase à organização do Estado (artigo 8o) e tratava dos Direitos e Garantias só a partir do artigo 153, como era o caso do mandado de segurança.
Hoje os Direitos e Garantias Fundamentais estão consignados de forma meramente exemplificativa, já a partir do artigo 5o, enquanto a organização do Estado ocorre somente a partir do artigo 18. Mas a Constituição continua merecendo a alcunha de colcha de retalhos, porque ao pretender atender a todos, não conseguiria contemplar ninguém.
Haverá nisso alguma sinalização ainda não compreendida? Por que a discussão sobre a Constituição conduz a incertezas geradas pelo descompasso entre retórica e aplicação? O que nos falta para compreender sua dimensão material superior e fundante além do plano formal?
O que será que aprendemos nesses vinte anos que nos possa servir de acalento e de esperança?
No Século XVIII Montesquieu (Capítulo XI) pontificava que:
“O Estado pode transformar-se de duas maneiras: ou porque a constituição é corrigida, ou porque ela se corrompe. Se o Estado conservou seus princípios, e a constituição se modifica, isto quer dizer que esta última se corrige; se o Estado perdeu seus princípios e a constituição vem a ser modificada, isto acontece porque esta se corrompe.”
A lição nunca foi tão atual, sobretudo diante do freqüente entendimento do Poder Judiciário de que o Estado (leia-se: Executivo) é responsável por tudo, como se a teoria da tirpartição separasse, faticamente, o poder.
Ora, falar de uma Constituição que se concretize democraticamente exige, antes de tudo, rememorar que o primado da democracia é a regra (prefiro norma). Não há democracia sem regras, e por isto mesmo é que a elas todos, indistintamente, estão vinculados.
Conquanto se fale, freqüentemente, em abertura de interpretação constitucional, é impositivo observar que livre-convencimento, autonomia funcional, autonomia administrativa, liberdade, discricionariedade não são categorias que se moldem pela vontade mais pessoal da autoridade, dos homens, enfim.
Tenho a Constituição em dimensão mais do que formal. Falo-lhes de pacto, pois não consigo compreender a Constituição senão por esse viés. Ela é um pacto compromissário, de essência humanitária, com natureza política e forma jurídica. É assim que a vejo, é assim que a sinto.
Já bem antes disso, todos sabemos, a “Magna Charta de João Sem Terra”, inobstante sua extensão limitada, consignava preceitos que serviram de inspiração às normas que fundamentaram a sociedade moderna.
A Constituição, ora como documento sociológico, com a conjugação de anseio popular e instrumento formal (Lassalle), ou como resultado de uma decisão política fundamental (Schmmitt), ou, ainda, como instrumento jurídico (Kelsen), convergiu para o consenso, que é um documento com propósitos orgânicos fundados não mais no sobrenatural, mas na racionalidade.
Constituição é sinônimo de compromisso, de convergência, não de unanimidade, nem de uniformidade, mas de núcleo de vontades democraticamente representadas, como, aliás, no caso da Constituição da República, o diz o parágrafo único do artigo 1º.
Com base nesse perfil de representatividade a Constituição de 1988 inaugurou um cenário de ampliação de direitos e garantias jamais visto na história do Brasil. São setenta e oito incisos e quatro parágrafos só no artigo 5º da Constituição de 1988. Desses dispositivos são derivadas inúmeras outras previsões que pretendem a efetivação da Constituição.
Ocorre que não se pode construir a efetividade sem que se tenha consciência dos pilares em que edificada a Norma Fundamental.
Nossa Constituição é concebida sobre os fundamentos da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. São princípios, compreendidos dentro de sua dimensão substancial, como verdades, valores, ideais, convencimentos eleitos como viga de uma estrutura. Sem ela (a estrutura) desaba o edifício constitucional. São princípios constitucionais fundamentais, não apenas princípios gerais de direito constitucional, como bem destaca José Afonso da Silva :
“Os primeiros integram o direito constitucional positivo, traduzindo-se em normas fundamentais, normas-síntese ou normas-matrizes [...] os princípios gerais formam temas de uma teoria geral do direito constitucional, por envolverem conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional”.
Em breve síntese dessa concepção poderíamos dizer que nada pode ser concretizado em termos de dispositivos constitucionais sem que haja transitado por essa estrutura. Vale dizer: não há sociedade livre e justa sem respeito à dignidade da pessoa humana. E é precisamente com ênfase na falta de respeito à dignidade da pessoa humana que construo estas idéias.
Ser digno é ter não apenas o direito, mas o acesso aos meios de produção de um Estado (refiro-me ao Brasil), a sua riqueza mais expressiva que é a potencialidade de produzir para seu próprio povo. Nisto não está nenhum gesto de clausura, isolamento ou de xenofobismo, mas uma prioridade que precisa ser abraçada pelos dirigentes deste país: ou há o compromisso de livrar esta sociedade ou não haverá sociedade para ser libertada, senão beligerantes em constante conflito civil, com o risco de desenvolverem-se os discursos ideológicos que são capazes de farta produção, inclusive de teratologias jurídicas esfuziantes.
Quando assistimos a segregação de pessoas em locais em que as políticas públicas são ineficientes, para não dizer inexistentes, é sinal que o Estado está ameaçado de ser substituído pelos grupos marginais que aterrorizam a sociedade.
A violência, então, passa a ganhar dimensões insuportáveis. Não apenas a violência física, cotidiana e incompatível com a integridade física e moral, mas a violência legal.
O Estado Legal, primeira fase do denominado Estado Constitucional, possui sua importância na história da civilização. Do absolutismo monárquico, com fundamentos teocêntricos, passou-se ao estado das leis, como produto do racionalismo iluminista, mas desembocou-se no Estado Social como alternativa ao legalismo opressor.
A lei nasceu para libertar, embora nesse objetivo oprima com sua força cogente, num mecanismo de limitação de espectros individuais em nome da vontade geral. Legislar, aplicar a lei e interpreta-la, contudo, não se divorciam da necessidade de observar a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana não prescinde da solidariedade, objetivo da República, como prevê o artigo 3º da Constituição.
Ora, como se pode compreender uma Constituição efetivada sem amparo nas mais incipientes regras que a compõem? Como suportar-se um julgamento midiático (o chamado tribunal da mídia) cotidiano, com linchamentos morais irreparáveis? Em nome do direito de informação ou da liberdade de expressão? Em nome de interesses econômicos ou políticos sutilmente inseridos em disputas regionais da Federação? Que ponderação de interesses será possível para dirimir esses conflitos?
Recuso-me a aceitar esse tipo de compreensão, de indiferença com a restrição ilegal da liberdade, com a conivência com o abuso de autoridade em quaisquer de suas formas, de arrogância quanto às aflições mais latentes.
A efetivação constitucional reside em apreender, compreender, desejar, cumprir e exigir o cumprimento da Constituição como um instrumento comum, sem as reservas de direitos a classes, senão aquelas especificamente necessárias e taxativas ao exercício de uma função. Isto é sentir a Constituição, tê-la por necessária, preservar-lhe a integridade em cada instante da vida cotidiana.
Fala-se muito em impunidade decorrente de um procedimento penal ultrapassado, cheio de regras e desvios que tornam o tempo o maior inimigo da sociedade. É quando surge o discurso de ruptura com o sistema, através de alternativas inseridas em soluções construídas em juízos singulares. Pensa-se, com isto, que se está a fazer justiça.
Lembro que o regime político das sociedades contemporâneas é representativo. Isto nos diz nossa Constituição. Assim, a cada “solução mágica” (entre aspas mesmo) tem-se a substituição de mais de seiscentos congressistas, eleitos pelo povo, por um único juízo que, sem nenhum critério legal, ou com base na deformada interpretação dele, passa a legislar individualmente, confundindo o justificar o Direito com o justiçar a sociedade. Ser juiz, promotor, advogado, delegado, enfim, operador do direito, não é ser justiceiro.
Uma sociedade nesses moldes é o retrocesso, a volta à barbárie. Aflições são condições humanas que merecem e devem ser solucionadas com critérios objetivos, com as normas contratadas, mas com forte dose de sensibilidade, jamais pelo subjetivismo arrogante.
A deformidade da lei está na consciência dos homens, não bastando o tempo para torná-la inadequada. Fosse assim e a concepção do “habeas corpus” seria desnecessária, pois remonta à própria “Magna Charta de João Sem Terra”.
Entendo que a aflição de nós cidadãos tem guarida, também, na ausência de conhecimento do texto constitucional, sem que sequer percebamos isto. Justifico este entendimento.
Desde o advento desta Constituição de 1988 tem-se regra expressa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (artigo 64) com o seguinte teor:
“A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração pública direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil”
Quantos lembram desta regra? Qual a sua densidade jurídico-política para o fenômeno da valoração constitucional e conseguinte construção do sentimento constitucional?
Não pretendo com isto comparar esta disposição constitucional com aquela ficção jurídica da Lei de Introdução ao Código Civil, que veda o desconhecimento da lei, mas desejo, sim, firmar como entendimento que a Constituição necessita ser incluída como matéria a ser estudada em todos os níveis da educação formal e informal. Este seria o primeiro momento de formação da consciência constitucional que estabelece a noção de sentimento constitucional.
Portanto, não basta ter-se a norma, sem que sua dimensão seja compreendida e cumprida por todos. A partir daí, então, o valor da Constituição assume seu lugar de destaque, uma vez que o sentimento constitucional estará sedimentado na noção de que se trata de um instrumento essencial para o cotidiano.
Mas, e quando o indivíduo tem por dever de ofício conhecer a lei? Quando esse indivíduo é uma autoridade que presta compromisso solene de cumpri-la? Notem bem. Não falei em prometer cumprir a Constituição. Falei em a autoridade jurar cumpri-la. É o que passo a considerar agora.
5. CRIMINALIZAÇÃO DAS VIOLAÇÕES CONSTITUCIONAIS EXPRESSAS, IMPLÍCITAS E DECORRENTES:
Poderia iniciar o tópico já afirmando que a criminalização das violações constitucionais é incompatível com os postulados de liberdade de que fala a Constituição Cidadã, para usar a retórica do sempre lembrado Ulysses Guimarães. Mas não é.
No Brasil de hoje ainda vige a Lei n. 4898/1965 que fala em punição civil, criminal e administrativa de autoridade pela prática de abuso de poder. Mencionada lei, durante todo esse tempo, só sofreu uma alteração. Foi através da Lei n. 7960/1989, que inseriu dispositivo para considerar crime a ausência de expedição em tempo oportuno ou de cumprir de forma imediata a ordem de liberdade.
A lei (4898/1965) considera expressamente como autoridade quem exerça cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que de forma transitória. É uma visão clara (pelo menos no âmbito formal) de que não é permitida a flexibilização da categoria AUTORIDADE, como ocorre na dimensão doutrinária (logo adotada pela jurisprudencial) do que seja agente político, público, administrativo etc.
Quando um policial excede do seu poder, violou a Constituição tanto quando um criminoso aponta uma arma ao cidadão indefeso. Quando um juiz sentencia com o desejo de beneficiar, infundadamente, uma das partes, equipara-se ao delinqüente, ao justiceiro, pois todos violam uma norma comum: a Norma Fundamental.
Desejo ratificar a todos aqui presentes que o Estado das Leis é o Estado da aflição, sempre que a sua existência vilipendiar a dignidade da pessoa humana.
Mas como fundamento constitucional só através da lei é que se pode edificar mecanismos que permitam fiscalizar esses desvios. Por isso o projeto de lei de autoridade do deputado Jungmann cuja justificativa é forjada nos seguintes pressupostos: “A Lei n. 4898, de 9 de dezembro de 1965, relativa ao abuso de autoridade está defasada. Precisa ser repensada, em especial, para melhor proteger os direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição de 1988 (mais rica no particular do que a Constituição de 1946, vigente quando da promulgação da Lei n. 48 98, de 1965). Bem assim para que se possam tornar efetivas as sanções destinadas a coibir e punir o abuso de autoridade”.
O projeto pretende que seja crime a prática, a omissão e o retardamento, no exercício da função pública, em razão dela ou a pretexto de exercê-la, com o intuito de impedir, embaraçar ou prejudicar o gozo de qualquer dos direitos e garantias fundamentais constantes do Titulo II da Constituição. O projeto atualiza a tipificação de condutas.
Na seara processual o projeto possibilita que o ofendido ou o seu representante legal acompanhem, ou assumam, o processo administrativo ou judicial, se houver negligência das autoridades competentes quanto à observância dos prazos.
O projeto, também, adota o mecanismo da defesa prévia da autoridade, a exemplo do processo de improbidade administrativa, apra evitar as promoções temerárias.
As penas são readequadas à realidade. Passam de quatro a oito anos de prisão e multa equivalente a 24 meses de salário da autoridade, enquanto a atual lei prevê apenas a penas de até seis meses de prisão.
Não restam dúvidas que o projeto avança no que diz respeito à proteção dos direitos e garantias fundamentais, preservando, ou procurando preservar o catálogo de direitos.
Mas minha proposta é por que não ser considerada a conduta crime contra o Estado Democrático de Direito? Por que centrá-lo na figura do abuso de autoridade?
Talvez possa parecer que a adoção de crime contra o Estado se assemelhe à figura da Lei de Segurança Nacional, instrumento que aterrorizava todos que lutassem contra o estado de exceção. Mas não se confunde com aquela lei.
A proposta que faço é de que a violação a expressos preceitos catalogados pela Constituição (e aí residiriam os preceitos constitucionais expressos, implícitos, porque dedutíveis e decorrentes de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil) serem tipificadas como crime contra o Estado Democrático de Direito, com penas superiores àquelas propostas no projeto do deputado, uma vez que se tratam de atos que não configurariam apenas abuso diante de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, mas verdadeira conduta atentatória contra o Estado Democrático de Direito. Pretendo, portanto, é a instituição de salvaguarda em favor do Estado Democrático de Direito, acima do qual nenhuma autoridade pode se pôr.
A criminalização dá ênfase ao compromisso jurado na assunção do “munus” público, seja o profissional advogado, juiz, promotor, delegado, defensor, enfim, detenha a mínima fatia de responsabilidade pública e haverá de possuir responsabilização pela prática de crime contra o Estado Democrático de Direito. Essa é uma forma de, pedagogicamente, atribuir à autoridade constituída a consciência de que a Constituição, embora trace normas de conduta, pois delineia preceitos, não é uma norma de etiqueta, pois não pode ser afastada pelo desejo individual.
A justificativa desta proposição não é incompatível com a proposta aqui considerada. Ao contrário, complementa o desejo de consolidar os postulados constitucionais que resolvo denominar de ética republicana.
6. CONCLUSÕES:
Devo concluir.
Democracia não é fazer tudo o que se quer, posto existir a ética da democracia do bem comum, o que não se reduz, necessariamente, ao espectro meramente majoritário. Maioria sem respeito às minorias é opressão. Portanto, democracia contém ordem. República é forma.
Sendo assim, a idéia de fundamento corresponde à idéia de base, de alicerce sobre o qual repousa todo um conjunto de preceitos que transitam primeiro pela sua fonte para, só então, mergulhar no ordenamento jurídico infraconstitucional.
Pensando assim, é preciso ter em mente que a percepção do que a Constituição contém como fundamento encontra na recente alteração constitucional (Emenda 45/2004) a exigência, mais do que nunca de atenção às novas fontes que deverão ser objeto de estudo. Refiro-me aos dispositivos inseridos no artigo 5o, quais sejam, o inciso LXXVIII e os parágrafos 3o e 4o do artigo 5o da Constituição da República.
Com a Emenda 45/2004 os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos passaram a desfrutar de destaque ainda maior, alçando a natureza de emendas constitucionais, portanto, ampliando as cláusulas pétreas previstas pelo artigo 60 da Constituição da República. Desde que sejam aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Tal situação possibilitou a ocorrência de quatro correntes interpretativas acerca da hierarquia constitucional, conforme entendimento de Flávia Piovisan : hierarquia supraconstitucional dos tratados, hierarquia constitucional, hierarquia infraconstitucional, mas supralegal e paridade hierárquica entre tratado e lei federal.
Penso que os tratados internacionais até aqui ratificados para que alcancem na nova ordem “status” de emenda constitucional, terão que passar pelo procedimento legislativo das emendas. Relembro o Pacto de San Jose da Costa Rica.
O Brasil passou a se submeter, por previsão constitucional, à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. Essa norma guarda certo descompasso com a idéia de soberania, mercê da expressão “se submete”. Soberania tem natureza excludente, na medida em que importa em desconhecer qualquer outra vontade política superior.
Dimitri Dimolius sustenta com acerto que “os textos constitucionais não se limitam a transmitir comandos, mas estão repletos de elementos simbólicos. Veiculam ideologias, crenças e sentimentos, estabelecem orientações políticas e elaboram formas de pensamento e ação”.
Sendo assim, como compatibilizar a submissão do Brasil a Tribunal Penal Internacional se a Constituição tem como fundamento republicano a soberania?
Com mais propriedade as constituições de Portugal e da França falam em poder aceitar (Portugal), poder reconhecer (França) a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. O Brasil já pelo ADCT (artigo 7o) propunha a luta pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.
O Tribunal Penal Internacional tem como norma fundamental o Estatuto de Roma, que contém diversas normas que se contrapõem a preceitos-garantias constantes da atual Constituição da República, sem falar em normas penais extravagantes em vigor. Lembro a pena de prisão perpétua e a entrega de qualquer pessoa procurada. Como dissipar esse conflito? Como assegurar essa força fundamental da Constituição no Estado Democrático de Direito?
Por certo a força fundamental da Constituição está na sua concepção democrática e pluralista, encerrando um conceito de Estado Democrático de Direito segundo o qual as minorias tem ressalvados os seus direitos e a democracia perde sua conotação meramente numérica na expressão.
Ferdinand Lassale, no clássico “A essência da Constituição” defendeu que as questões constitucionais não são questões jurídicas, mas questões políticas, pois encerram fatores reais de poder. Com sua “A Força Normativa da Constituição”, Konrad Hesse pretendeu ponderar que o embate entre esses fatores reais e a Constituição não torna esta a parte mais fraca.
Nós pretendemos aqui defender que essa força, mais do que normativa simplesmente, é fundamental, na medida em que transcende os elementos realizáveis de que fala Hesse, pois tem base compromissária na aceitação democrática e geral da sociedade.
Portanto, é na Constituição, vontade geral, de onde se origina a fonte do Direto no Estado Democrático, não por recurso retórico ou estilístico, mas porque a norma-compromisso reproduz esse pacto baseado em elementos fundamentais da República.
Violar essas disposições quando se tem o “munus” de preservar a ordem constitucional encerra, em nosso sentir, um verdadeiro crime contra o Estado Democrático de Direito, e deve ser assim tratado, pois o catálogo de preceitos fundamentais transcende, hoje, o corpo normativo legislativo de um Estado, já que o Direito Constitucional dos Povos é uma realidade que ganha dimensão comunitária
O sentimento constitucional conquanto se instaure no plano subjetivo, não prescinde de objetividade que lhe dê consistência, até porque só se pode compreender como sentimento aquilo que se compraz com algo efetivamente amadurecido. Não se confunda sentimento (elemento que já reúne consistência) com sensação, o mais incipiente e elementar momento do sentir.
Que seja viva a Constituição para que a democracia não morra.
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