SENTIMENTO CONSTITUCIONAL E A DEFESA DO INTERESSE PÚBLICO
José Cláudo Pavão Santana*
INTRODUÇÃO
Pretendo falar-lhes sobre o sentimento constitucional e a defesa do interesse público. Trata de assunto que busca enfrentar a temática (o sentimento constitucional) como resultado da valoração intrínseca e extrínseca que deve merecer a Constituição. O momento é dos mais propícios em virtude dos 19 anos que completaram a Constituição da República.
O assunto já teve a atenção de autores como Karl Loewenstein e Pablo Lucas Verdu dentre tantos outros, servindo-nos de fomento a uma discussão que nos ocupa a partir de duas perspectivas que desejo abordar: Uma diz respeito à necessidade de difusão do documento fundamental como instrumento de suporte ao conhecimento do mesmo. O outro diz respeito à compatibilização das idéias de completude, complementação e estabilidade como pilares de edificação do próprio sentimento que retro-alimenta o sistema constitucional. Isto, claramente significa: a) maciça publicidade da Constituição como documento fundamental; b) compatibilizar transformação e estabilidade constitucional.
Minha reflexão cuida da Constituição enquanto símbolo do poder constituído democraticamente, estabelecendo uma crítica em torno da apreensão do modelo constitucional republicano, defendendo a idéia de ética republicana para desembocar na defesa do interesse público.
Propugno a utilização literária como mote deste colóquio. Faço-o através de uma passagem de um dos mais conhecidos livros da literatura universal: O pequeno príncipe.
Parto da narrativa do autor acerca da insistência do pequeno menino de que lhe fosse dado um desenho:
“‑ Por favor...desenha-me m carneiro...”
[...]
“‑ Esta é a caixa. O carneiro que queres está aí dentro.”
O diálogo entre o piloto e o “Pequeno príncipe” serve como alegoria para nossa proposição, pois nele pode ser obtida a idéia de completude.
A impaciência (confessa o autor) foi o sentimento que o moveu para abreviar uma discussão em torno de um desejo inusitado. É que desde jovem fora vítima da confusão entre o desenho de uma jibóia e um chapéu. Piloto e menino, na narrativa, exteriorizaram sentimentos.
O que move, portanto, o homem é o conjunto de sentimentos que se exprime através de símbolos, sejam solenes ou não. Formais ou informais. De requinte ou de simplicidade. Todos são sentimentos exteriorizados que emanam ora da racionalidade, ora do instinto, mas em todas as circunstâncias significam a expressão de vontade.
Essa idéia sentimental é significativamente extensiva ao fenômeno do constitucionalismo, uma vez que Constituição nada mais é do que expressão de sentimento desenhada na vontade real, na decisão fundamental ou na expressão normativa. Pode, também, envolver todas essas perspectivas que, somadas, conduzem a uma visão eclética, uma vez contendo um elemento de cada uma dessas visões do que seja uma Constituição.
Sendo assim, a Constituição precisa ser apreendida como um elemento vinculante, cuja existência é resultado da composição da idéia de constitucionalismo como processo de recolhimento de ideais, reflexões e manifestações, não necessariamente circunscrito ao século XVIII.
A percepção constitucional, portanto, é a primeira condição a ser destacada como elemento que reside na noção que se possa ter da Constituição. Não apenas a idéia resultante da colonização da Nova Terra, cujo marco da formulação conceptual formal é um dos ícones no estudo do Direito Constitucional. Ao contrário, a idéia perceptiva de Constituição cuida de estádio de convencimento, da idéia de essencialidade, de necessidade, de indisponibilidade.
Assim sendo, a caixa que continha o carneiro, na alegoria construída, representa a completude sistêmica em que a idéia de moldura encerra toda a extensão do jurídico. Nada mais, além do espaço interno da caixa, seria necessário para conter a dimensão do sistema, composto pelo espaço pelo carneiro e por seu alimento.
É admissível que se possa obstar que a caixa desenhada ao pequeno príncipe não teria natureza sistêmica, pois o conjunto de elementos (no caso o carneiro o espaço físico e o seu alimento) reunidos aleatoriamente não conduziriam à idéia de sistema. Não se trata disso, contudo, pois já se afirmou que a figura literária é apenas alegórica para construir a idéia de completude.
Tem-se a certeza de que sistema encerra a noção de compatibilidade, pertinência, relação com objetivo específico. Uma sala de aula só se compreende como tal quando a idéia de um professor, carteiras, apontador, quadro, enfim, são reunidos como micro-sistemas com finalidade própria.
Constituição é sistema incompleto que necessita de retro-alimentação através de inserções que permitam o aperfeiçoamento, sem, contudo pôr em risco sua integridade. O processo constituinte é contínuo e nele reside, também, o poder de desconstiuição inerente ao poder constituinte derivado, sujeito, evidentemente, aos limites materiais e formais doutrinariamente construídos. Portanto, Constituição implica em estabilidade pela preservação de seus fundamentos, conjugada a um processo constituinte regular que tenha como finalidade sempre o aperfeiçoamento.
Ocorre que sob o discurso transformador pode residir a ideologia da instabilidade institucional, vale dizer: quando pior melhor. Desse modo, o processo constituinte, antes de ser instrumento de consolidação passa a desempenhar papel de algoz, pondo em xeque o sentimento constitucional, que desembocará no enfraquecimento da valoração da Norma Fundamental.
Sentimento constitucional é o convencimento consciente de que o pacto fundamental é imprescindível, daí por que Loewnstein é preciso ao advertir que as “...reformas constitucionais empreendidas por razões oportunistas para facilitar a gestão política desvaloriza o sentimento constitucional”[1] que põem em risco a sedimentação do sentimento.
Sentimento é resultado de valoração, portanto, estabilidade constitucional é processo que não pode ser confinado apenas ao poder constituinte representativo, mas se estende a todos os destinatários da Constituição. Outra razão não há para o ensino dos valores, símbolos e história na sociedade norte americana.
Isto, alias, é o objetivo da regra contida no artigo 13, § 1º da Constituição da República: “São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais”.
A Constituição do Brasil tem sistematicamente sido alvo de alterações num processo que denominamos de “ordinarização material”, cenário próprio para o enfraquecimento do sentimento constitucional.
A “ordinarização material” é o sentimento legislativo de mudar a Constituição em momentos próximos, conquanto formalmente seja obedecido o processo constituinte especial. Muda-se por causa da exigência do capital internacional; construindo-se a idéia de flexibilização, ora abrandando-se a norma constitucional, ora simplesmente rotulando-se o processo de desconstitucionalização de direitos, tudo em nome da conveniência governamental.
Vejamos, então, algumas reflexões acera da Constituição de 1988.
A CONSTITUÇÃO:
O estudo do Direito Constitucional ganhou espaço no Brasil seguramente em face do advento da Constituição da República de 1988. Assim prefiro denomina-la, em contraposição ao artificialismo de Constituição Federal, forma de Estado instrumentalmente compreendida apenas, já que se vive na República, sem qualquer sentimento federativo, aliás.
Com ela (a Constituição) criou-se uma grande expectativa de dirimir conflitos já sedimentados no longo período de ditadura militar. Nela foram inseridos direitos jamais vistos na história deste país, como se fosse um desejo de resgate, de explosão de angústias e vontades sufocadas.
A Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1/1969, submeteu a ordem jurídica a mecanismos artificiais de controle, dentre os quais o ideológico, através dos instrumentos que asseguravam eficácia à Lei de Segurança Nacional, via que pavimentava a “legitimação” (ponho a palavra entre aspas) para a instauração de averiguações (os Inquéritos Policiais Militares) aos quais eram submetidos todos aqueles que se insurgissem contra o sistema político vigente.
Trouxe consigo, ainda, do Direito Italiano, o decreto-lei, como instrumento que suprimiu, em grande parte, a ação ordinária do Congresso Nacional.
A Constituição daquela época, com roupagem formal precisa, deve-se reconhecer, escorreita, consignava a decisão política fundamental daqueles tempos sombrios. Nesse particular não foge à regra do poder constituinte derivado em cada momento histórico. Havia um sentimento contido pela força das armas.
E hoje, haveria um sentimento contido pela força da lei? Que Estado possuímos? Estado de Lei ou Estado de Direito? Estado de Medidas Provisórias?
Falou-se, durante a resistência, que a Constituição seria uma colcha de retalhos, porque a Constituição de 1967, com a Emenda n. 1/1969, era um apanágio de disposições cuja concepção dava ênfase à organização do Estado (artigo 8o) e tratava dos Direitos e Garantias só a partir do artigo 153, como era o caso do mandado de segurança.
Hoje os Direitos e Garantias Fundamentais estão consignados de forma meramente exemplificativa, já a partir do artigo 5o, enquanto a organização do Estado ocorre somente a partir do artigo 18. Mas a Constituição continua merecendo a alcunha de colcha de retalhos, porque ao pretender atender a todos, não conseguiria contemplar ninguém.
Haverá nisso alguma sinalização ainda não compreendida? Por que a discussão sobre a Constituição conduz a incertezas geradas pelo descompasso entre retórica e aplicação? O que nos falta para compreender sua dimensão material superior e fundante além do plano formal?
Todas estas são questões que angustiam os cientistas e que não têm merecido, a bem da verdade, a atenção exigida por essa norma que ganha dimensão poética, lírica, política, nas sessões solenes e televisadas, logo subjugada ao quotidiano parlamentar dos fatos que estão a nos estarrecer diariamente. Minha esperança é que esse quadro, pela reiterada freqüência, não consiga aplacar a capacidade de indignação.
O que será que aprendemos nesses dezenove anos que nos possa servir de acalento e de esperança?
No Século XVIII Montesquieu[2] (Capítulo XI) pontificava que:
“O Estado pode transformar-se de duas maneiras: ou porque a constituição é corrigida, ou porque ela se corrompe. Se o Estado conservou seus princípios, e a constituição se modifica, isto quer dizer que esta última se corrige; se o Estado perdeu seus princípios e a constituição vem a ser modificada, isto acontece porque esta se corrompe.”
A Constituição concebida como Norma Fundamental, conquanto tenha, historicamente, rompido com o absolutismo monárquico, é sucessora do Estado Legal burguês, primeira fase do constitucionalismo moderno. Sua função é organizar o Estado, expressando em sua base o conjunto de valores acalentados por um povo em determinado momento histórico. Tem ela (a Constituição) a força normativa superior a todas as normas não apenas por uma percepção retórica, mas por que contém em si mesma a declaração expressa de sua origem, sua legitimidade popular, além do rol legislativo consignado em seu texto, como ocorre no Brasil no âmbito do artigo 59.
Minha pretensão é falar-lhes de uma Constituição decorrente do Estado de Direito Democrático, em que se possa alcançar a concretização da Constituição não apenas pelo processo legislativo ordinário decorrente de um Poder Legislativo democraticamente constituído, ou pela função interpretativa e guardiã reservada ao Supremo Tribunal Federal, senão, também, pela efetiva e real participação popular no processo constituinte permanente, ou de reconstituição permanente, que conduz à formação e sedimentação de um sentimento constitucional difuso.
Para tanto, é fundamental elastecer a via da iniciativa popular, hoje enclausurada em fórmula cuja dificuldade mais distancia o espírito de vivificação da Constituição, do que lhe serve como instrumento de democratização. É o que já acontece na América Latina com o crescimento da discussão sobre a Ação Popular Constitucional.
Tenho a Constituição em dimensão mais do que formal. Falo-lhes de pacto, pois não consigo compreender a Constituição senão por esse viés. Ela é um pacto compromissário, de essência humanitária, com natureza política e forma jurídica. É assim que a vejo, é assim que a sinto.
Já bem antes disso, todos sabemos, a “Magna Charta de João Sem Terra”, inobstante sua extensão limitada, consignava preceitos que serviram de inspiração às normas que fundamentaram a sociedade moderna.
A Constituição, ora como documento sociológico, com a conjugação de anseio popular e instrumento formal (Lassalle), ou como resultado de uma decisão política fundamental (Schmmitt), ou, ainda, como instrumento jurídico (Kelsen), convergiu para o consenso, que é um documento com propósitos orgânicos fundados não mais no sobrenatural, mas na racionalidade.
Constituição é sinônimo de compromisso, de convergência, não de unanimidade, nem de uniformidade, mas de núcleo de vontades democraticamente representadas, como, aliás, no caso da Constituição da República, o diz o parágrafo único do artigo 1º.
Com base nesse perfil de representatividade a Constituição de 1988 inaugurou um cenário de ampliação de direitos e garantias jamais visto na história do Brasil. São setenta e oito incisos e quatro parágrafos só no artigo 5º da Constituição de 1988. Desses dispositivos são derivadas inúmeras outras previsões que pretendem a efetivação da Constituição.
Ocorre que não se pode construir a efetividade sem que se tenha consciência dos pilares em que edificada a Norma Fundamental.
Nossa Constituição é concebida sobre os fundamentos da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. São princípios, compreendidos dentro de sua dimensão substancial, como verdades, valores, ideais, convencimentos eleitos como viga de uma estrutura. Sem ela (a estrutura) desaba o edifício constitucional. São princípios constitucionais fundamentais, não apenas princípios gerais de direito constitucional, como bem destaca José Afonso da Silva[3]:
“Os primeiros integram o direito constitucional positivo, traduzindo-se em normas fundamentais, normas-síntese ou normas-matrizes [...] os princípios gerais formam temas de uma teoria geral do direito constitucional, por envolverem conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional”.
Em breve síntese dessa concepção poderíamos dizer que nada pode ser concretizado em termos de dispositivos constitucionais sem que haja transitado por essa estrutura. Vale dizer: não há sociedade livre e justa sem respeito à dignidade da pessoa humana. E é precisamente com ênfase na falta de respeito à dignidade da pessoa humana que construo estas idéias.
Ser digno é ter não apenas o direito, mas o acesso aos meios de produção de um Estado (refiro-me ao Brasil), a sua riqueza mais expressiva que é a potencialidade de produzir para seu próprio povo. Nisto não está nenhum gesto de clausura, isolamento ou de xenofobismo, mas uma prioridade que precisa ser abraçada pelos dirigentes deste país: ou há o compromisso de livrar esta sociedade ou não haverá sociedade para ser libertada, senão beligerantes em constante conflito civil, com o risco de desenvolverem-se os discursos ideológicos que são capazes de farta produção, inclusive de teratologias jurídicas esfuziantes.
Quando assistimos a segregação de pessoas em locais em que as políticas públicas são ineficientes, para não dizer inexistentes, é sinal que o Estado está ameaçado de ser substituído pelos grupos marginais que aterrorizam a sociedade.
A violência, então, passa a ganhar dimensões insuportáveis. Não apenas a violência física, cotidiana e incompatível com a integridade física e moral, mas a violência legal.
O Estado Legal, primeira fase do denominado Estado Constitucional, possui sua importância na história da civilização. A lei nasceu para libertar, embora nesse objetivo oprima com sua força cogente, num mecanismo de limitação de espectros individuais em nome da vontade geral. Legislar, aplicar a lei e interpreta-la, contudo, não se divorciam da necessidade de observar a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana não prescinde da solidariedade, objetivo da República, como prevê o artigo 3º da Constituição.
Ora, como se pode compreender uma Constituição efetivada sem amparo nas mais incipientes regras que a compõem? Como suportar-se um julgamento midiático (o chamado tribunal da mídia) cotidiano, com linchamentos morais irreparáveis? Em nome do direito de informação ou da liberdade de expressão? Em nome de interesses econômicos ou políticos sutilmente inseridos em disputas regionais da Federação? Que ponderação de interesses será possível para dirimir esses conflitos?
É na liberdade de informação que reside a liberdade de imprensa, objetivamente tratada na Constituição de 1988 no Capítulo V, Da Comunicação Social, com a regra expressa no artigo 220: A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. É uma previsão decorrente ajustada aos parâmetros do direito de manifestação de pensamento, conforme o inciso IV[4] do artigo 5º da Norma Fundamental.
Dão complementação ao dispositivo constitucional o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n. 4.117, de 27-8-1962), a Lei de Imprensa (Lei n. 5.250, de 9-2-1967) e a Lei n. 9.472, de 16-7-1997, que organiza os serviços de telecomunicações.
A liberdade de imprensa, portanto, possui dimensão dilargada pelo texto constitucional, sinalizando com a impossibilidade de controle legislativo infraconstitucional, na medida em que os princípios que envolvem a liberdade de informação constituir-se-iam em fundamento do pluralismo abraçado pela Constituição. Mas essa impossibilidade logo se converte em aparência, na medida em que situações concretas exigirão a mesma proteção constitucional.
É imprescindível ter em mente que a liberdade de manifestação, o direito à informação, a liberdade de constituição de veículos de comunicação impresso não outorgam a seus proprietários o direito de informar o que lhes convenha, prática, aliás, muito freqüente no Brasil, à vista da concentração da propriedade em grupos restritos.
Para que se tenha a dimensão do quadro, com dados de 2001, no Brasil, “...90% da indústria cultural pertencia a apenas nove famílias: Abravanel (SBT), Bloch (Manchete), Civita (Abril), Frias (Folha de São Paulo), Marinho (Globo), Mesquita (Estado de São Paulo), Saad (Bandeirantes), Sirotsky (RBS) e Nascimento Brito (Jornal do Brasil)”[5].
Esse quadro é preocupante e exige o discernimento e a responsabilidade para compreender que “notícia é a difusão de um fato real e seu contexto. Opinião é a aplicação de princípios a um fato real. A propaganda consiste nas mensagens de idéias”. Portanto, “as mensagens de fatos são notícias; as mensagens de juízo são as opiniões[6].
É indispensável, assim, que os meios de produção cultural em geral tenham a responsabilidade suficiente para compreender o papel democrático que devem desempenhar, na medida em que o direito de informação alcança natureza difusa.
A informação é direito difuso, uma vez que todos, indistintamente, têm o direito à informação verdadeira de fatos, por isso subsumido esse direito ao Código do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11-09-1990), como à Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347, de 24-07-1985). Há, ademais, um viés de utilidade pública na imprensa, o que reforça ainda mais essa idéia, não se podendo converter opiniões em fatos, servindo como exemplos inúmeros ocorridos por aqui e por outras terras deste imenso país.
A liberdade de exploração do ramo de comunicação como decorrência do princípio da livre iniciativa não torna o explorador do negócio um agente refém do Estado, mas também não o transforma em alguém superior ao Estado.
Recuso-me a aceitar esse tipo de compreensão (parta de onde partir), de indiferença com a restrição ilegal da liberdade, com a conivência com o abuso de autoridade em quaisquer de suas formas, de arrogância quanto às aflições mais latentes.
A efetivação constitucional reside em apreender, compreender, desejar, cumprir e exigir o cumprimento da Constituição como um instrumento comum, sem as reservas de direitos a classes, senão aquelas especificamente necessárias e taxativas ao exercício de uma função. Isto é sentir a Constituição, tê-la por necessária, preservar-lhe a integridade em cada instante da vida cotidiana.
Fala-se muito em impunidade decorrente de um procedimento penal ultrapassado, cheio de regras e desvios que tornam o tempo o maior inimigo da sociedade. É quando surge o discurso de ruptura com o sistema, através de alternativas inseridas em soluções construídas em juízos singulares. Pensa-se, com isto, que se está a fazer justiça.
Lembro que o regime político das sociedades contemporâneas é representativo. Isto nos diz nossa Constituição. Assim, a cada “solução mágica” (entre aspas mesmo) tem-se a substituição de mais de seiscentos congressistas, eleitos pelo povo, por um único juízo que, sem nenhum critério legal, ou com base na deformada interpretação dele, passa a legislar individualmente, confundindo o justificar o Direito com o justiçar a sociedade. Ser juiz, promotor, advogado, delegado, enfim, operador do direito, não é ser justiceiro.
Uma sociedade nesses moldes é o retrocesso, a volta à barbárie. Aflições são condições humanas que merecem e devem ser solucionadas com critérios objetivos, com as normas contratadas, mas com forte dose de sensibilidade, jamais pelo subjetivismo arrogante.
A deformidade da lei está na consciência dos homens, não bastando o tempo para torná-la inadequada. Fosse assim e a concepção do “habeas corpus” seria desnecessária, pois remonta à própria “Magna Charta de João Sem Terra”.
Entendo que a aflição de nós cidadãos tem guarida, também, na ausência de conhecimento do texto constitucional, sem que sequer percebamos isto. Justifico este entendimento.
Desde o advento desta Constituição de 1988 tem-se regra expressa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (artigo 64) com o seguinte teor:
“A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração pública direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil”
Quantos lembram desta regra? Qual a sua densidade jurídico-política para o fenômeno da valoração constitucional e conseguinte construção do sentimento constitucional?
Não pretendo com isto comparar esta disposição constitucional com aquela ficção jurídica da Lei de Introdução ao Código Civil, que veda o desconhecimento da lei, mas desejo, sim, firmar como entendimento que a Constituição necessita ser incluída como matéria a ser estudada em todos os níveis da educação formal e informal. Este seria o primeiro momento de formação da consciência constitucional que estabelece a noção de sentimento constitucional.
Portanto, não basta ter-se a norma, sem que sua dimensão seja compreendida e cumprida por todos. A partir daí, então, o valor da Constituição assume seu lugar de destaque, uma vez que o sentimento constitucional estará sedimentado na noção de que se trata de um instrumento essencial para o cotidiano.
Quando um policial excede do seu poder, violou a Constituição tanto quando um criminoso aponta uma arma ao cidadão indefeso. Quando um juiz sentencia com o desejo de beneficiar, infundadamente, uma das partes, equipara-se ao delinqüente, ao justiceiro, pois todos violam uma norma comum: a Norma Fundamental.
Desejo ratificar a todos aqui presentes que o Estado das Leis é o Estado da aflição, sempre que a sua existência vilipendiar a dignidade da pessoa humana.
Respondendo os questionamentos que fiz, ou pelo menos tentando responde-los, vejo um sentimento de opressão legal não apenas no Brasil, na dimensão que o autoritarismo tem tomado no continente. Há lei?, Pergunta o jovem agente público, então posso, responde a imaturidade arbitrária.
Possuímos um Estado Legal, sem dúvidas, mas ainda caminhamos a passos lentos para a efetivação de um Estado Democrático de Direito.
Estado das Leis existe para libertar os homens, nunca para oprimi-los. Estado de Direito existe para terminar a aflição de todos, com a consecução de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
A Constituição de 1988 encerrou um período institucional autoritário na história do Brasil, com a perspectiva de servir como esteio aos anseios mais democráticos de uma sociedade combalida pelos mais diversos problemas estruturais e conjunturais.
Desejo fixar como ponto fundamental desta exposição o meu convencimento de que a Constituição é um instrumento compromissário e vinculante quotidiano.
Amparado em Friedrich Müller[7] vislumbro que:
“A constituição de si mesma não se faz por meio da redação e subscrição de um papel chamado ‘Constituição’. Uma associação se constitui realmente pela práxis, não pelo diploma; não por meio de entrada em vigor, mas pela vigência: diariamente, na duração histórica.”
Não se pode perder de vista que a redução da Constituição a processos circunstanciais de mudanças que se ajustem aos momentos convenientes de governos mais do que adequação do processo constituinte permanente é via de enfraquecimento da Constituição, frustrando o processo de sedimentação do sentimento constitucional.
MUDANÇA CONSTITUCIONAL: Avanço ou retrocesso?
Vimos como pressupostos da idéia de formação do sentimento constitucional a necessidade de difusão do documento fundamental como instrumento de suporte ao conhecimento. Relacionamos, por outro lado, a compatibilização das idéias de completude, complementação e estabilidade como pilares de edificação do próprio sentimento que retro-alimenta o sistema constitucional.
A caixa em que o autor pôs o carneiro para o pequeno príncipe como alternativa de abreviar um diálogo inquieto, alegoricamente contém a idéia de Constituição completa, portanto, de norma bastante em si mesma.
Por certo que essa perspectiva teorética é possível, se o objetivo é buscar o plano lógico-jurídico como cenário de conhecimento jurídico. Contudo, sabe-se que Constituição necessita de um plano de aplicabilidade para que suas normas possam justificar seus preceitos de forma concreta. E é no plano de concretude das normas que se constatará a necessidade de que a Constituição sofra as alterações que, em tese, têm o papel de aperfeiçoá-la.
Para tanto, nós temos que compreender que existe uma ética republicana que envolve todo e qualquer assunto sob análise jurídica, onde se incluem as questões na órbita judicial.
Mas é também necessário compreendermos que existe uma ética na democracia que é indispensável ser observada.
Democracia não é fazer tudo o que se quer, posto existir a ética da democracia do bem comum, o que não se reduz, necessariamente, ao espectro meramente majoritário. Maioria sem respeito às minorias é opressão. Portanto, democracia contém ordem. República é forma.
Entendo, assim, que ordenamento é a organização legislativa vigente. E com este entendimento é que constato que inúmeras vezes ações judiciais em torno de indenização por danos morais lançam-se a discutir a previsão codificada, para, então, finalizar com a celebre afirmativa de que “tudo consoante previsto na Carta Magna”.
Este é um exemplo em que a norma inferior tem a pretensão de ser válida isoladamente, desembocando na Constituição como se houvesse assim uma espécie de “toque final”, o último confeite posto no bolo de casamento. Isto é teratologia pura, mas nós vemos diariamente esse tipo de entendimento, que não está confinado às petições dos advogados, sendo objeto de pareceres e sentenças à profusão.
Isto se dá com quase todas as ações judiciais cotidianamente propostas, subvertendo-se a estrutura piramidal que a todos continua a desafiar.
República encerra a idéia de “res publicae”, nem “res nullius” nem “res derrelicta”. Nessa categoria está a eletividade dos cargos, a temporariedade dos mandatos, a alternância de poder (essa nem sempre visível em algumas sociedades no Brasil).
Sendo assim, a idéia de fundamento corresponde à idéia de base, de alicerce sobre o qual repousa todo um conjunto de preceitos que transitam primeiro pela sua fonte para, só então, mergulhar no ordenamento jurídico infraconstitucional.
O fundamento constitui-se em elemento cuja compreensão não pode ser obra apenas de cientistas, mas de todo operador do Direito, sendo, por isso, ultrapassada a idéia de que a Constituição retórica é bastante para um arrazoado servível ao foro. Mesmo nas demandas judiciais aparentemente mais simples residem elementos científicos inimagináveis pelo juízo pragmático puro.
Pensando assim, é preciso ter em mente que a percepção do que a Constituição contém como fundamento encontra na recente alteração constitucional (Emenda 45/2004) a exigência, mais do que nunca de atenção às novas fontes que deverão ser objeto de estudo. Refiro-me aos dispositivos inseridos no artigo 5o, quais sejam, o inciso LXXVIII e os parágrafos 3o e 4o do artigo 5o da Constituição da República.
Tomemos por empréstimo a hipótese de ações judiciais que buscam reparação por conta da inação do Poder Judiciário.
Normalmente vemos pedidos de indenização formulados a partir do Código Civil decorrentes de lesões causadas às vezes por inércia cartorária, outras vezes Ministerial, muitas (e por que não?) causadas por uns poucos advogados, além, é claro, daquelas causadas por alguns juízes cuja percepção é de que são delfins de um “Estado de Juízes” cuja vontade pessoal se sobrepõe ao próprio princípio da legalidade, como se estivessem imunes ao preceito constitucional, enquanto o Estado, ou seja, nós contribuintes, arcamos com a conta muitas vezes astronômica em nome do Direito individual à prestação jurisdicional.
O que antes era buscado no Código Civil, em nome do princípio da responsabilidade subjetiva, passou a encontrar na Constituição da República (artigo 37, § 6o) desaguadouro de teses estéreis acerca da responsabilidade objetiva. Presente o Estado presente a responsabilidade, esvaziando-se, assim, elementos como conexão e concorrência de ação como determinantes do evento danoso.
O que destaco nesse particular é que a construção hermenêutica é elaborada de espécie para gênero, como se o fundamento do poder residisse, inicialmente, na norma infraconstitucional, servindo a Constituição apenas como referencia estilística, o que constitui grave equívoco. Falta, aqui, o sentimento de que falo.
Ora, é a partir da Norma Fundamental que podemos e devemos exercer a discussão sobre o Direito material e instrumental, poupando-nos a futura improvisação quase sempre imposta pela cultura dos embargos de declaração como pré-requisito aos recursos Especial e Extraordinário, majoritariamente fadados à inadmissão por critérios meramente subjetivos das assessorias que confundem juízo de admissão com juízo de mérito.
Se antes o acesso ao Judiciário era garantido agora foi ampliado, com a previsão de que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
O que é fundamental aqui? Indago. A norma que estabelece o direito-garantia ou a regra que prevê os elementos caracterizadores e definidores da extensão do dano? O que é uma “razoável duração do processo”?
Parece-me óbvio que não se pode falar em regra de Direito Civil sem antes falar na Norma Constitucional, na medida em que a sua natureza fundamental é alicerce de todo o ordenamento. Se óbvio possa parecer esta conclusão não o é por um critério meramente formal, mas pela natureza vinculativa da Norma Fundamental. Ela é uma declaração aceita por todos que desejamos construir uma sociedade livre, justa, solidária e soberana. Isto é Estado de Direito. Não falo do Estado Legal, é bom atentar.
Para aplacar a curiosidade, inobstante constitua objeto de outra conferencia, a prestação jurisdicional com razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação não transforma a marcha processual. Na realidade deve ser adaptada ao conjunto de recursos judiciais e solenidades cartorárias. Tem-se, portanto, que considerar o tempo real e o tempo formal do processo. Infelizmente essa é uma constatação, enquanto não houver uma reforma processual efetivamente comprometida mais com a sociedade, menos com os juristas e de menor obediência aos interesses editoriais.
O ordenamento jurídico de que falo hoje ganha uma nova concepção, pois possui fontes cuja força determinante é um processo de que já falamos em várias oportunidades. A internacionalização do Direito Constitucional e a constitucionalização do Direito Internacional.
Isto não está a exigir uma nova postura do profissional do Direito? Esse operador que vive e sobrevive entre as mazelas dos processos não deve estar atento a isso? Claro que sim, porque a Constituição deixou de ser apenas o conjunto de enunciados expressos, ganhando dimensão bem maior já com o § 2o do artigo 5o que nos dá a noção substancial de Constituição.
Com a Emenda 45/2004 os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos passaram a desfrutar de destaque ainda maior, alçando a natureza de emendas constitucionais, portanto, ampliando as cláusulas pétreas previstas pelo artigo 60 da Constituição da República. Desde que sejam aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
O preceito minimiza, mas não elimina controvérsia acerca da natureza dessas normas que eram ratificadas simplesmente por decreto legislativo, norma hierarquicamente inferior, situação que produzia a teratológica hipótese de norma ordinária validar norma internacional de essência constitucional.
Tal situação possibilitou a ocorrência de quatro correntes interpretativas acerca da hierarquia constitucional, conforme entendimento de Flávia Piovisan[8]: hierarquia supraconstitucional dos tratados, hierarquia constitucional, hierarquia infraconstitucional, mas supralegal e paridade hierárquica entre tratado e lei federal.
Penso que os tratados internacionais até aqui ratificados para que alcancem na nova ordem “status” de emenda constitucional, terão que passar pelo procedimento legislativo das emendas. Relembro o Pacto de San Jose da Costa Rica.
O Brasil passou a se submeter, por previsão constitucional, à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.
Essa norma guarda certo descompasso com a idéia de soberania, mercê da expressão “se submete”.
Soberania tem natureza excludente, na medida em que importa em desconhecer qualquer outra vontade política superior.
Dimitri Dimolius[9] sustenta com acerto que “os textos constitucionais não se limitam a transmitir comandos, mas estão repletos de elementos simbólicos. Veiculam ideologias, crenças e sentimentos, estabelecem orientações políticas e elaboram formas de pensamento e ação”.
Sendo assim, como compatibilizar a submissão do Brasil a Tribunal Penal Internacional se a Constituição tem como fundamento republicano a soberania?
Com mais propriedade as constituições de Portugal e da França falam em poder aceitar (Portugal), poder reconhecer (França) a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. O Brasil já pelo ADCT (artigo 7o) propunha a luta pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.
O Tribunal Penal Internacional tem como norma fundamental o Estatuto de Roma, que contém diversas normas que se contrapõem a preceitos-garantias constantes da atual Constituição da República, sem falar em normas penais extravagantes em vigor. Lembro a pena de prisão perpétua e a entrega de qualquer pessoa procurada. Como dissipar esse conflito? Como assegurar essa força fundamental da Constituição no Estado Democrático de Direito?
Por certo a força fundamental da Constituição está na sua concepção democrática e pluralista, encerrando um conceito de Estado Democrático de Direito segundo o qual as minorias tem ressalvados os seus direitos e a democracia perde sua conotação meramente numérica na expressão.
Recordo o Prof. Pinto Ferreira ao pontificar que democracia é a possibilidade de você admitir que o seu oponente tenha razão. Essa visão simples na proposição, mas soberba na essência, envolve a necessidade de despertarmos para aquela visão compromissaria proposta por nós para a Constituição. E isto não tem vez apenas nos tratados de Teoria Geral do Direito, de Ciência Política ou de Direito Constitucional. Está no dia-a-dia.
Ao buscarmos a prestação jurisdicional o fazemos porque a Constituição assegura essa possibilidade; ao pleitearmos indenizações os fundamentos ali estão, os argumentos esquematizados em regras estarão na ordem jurídica, daí a importância de se distinguir fundamento jurídico de fundamento legal do pedir.
Ferdinand Lassale, no clássico “A essência da Constituição” defendeu que as questões constitucionais não são questões jurídicas, mas questões políticas, pois encerram fatores reais de poder. Com sua “A Força Normativa da Constituição”, Konrad Hesse pretendeu ponderar que o embate entre esses fatores reais e a Constituição não torna esta a parte mais fraca.
Nós pretendemos aqui defender que essa força, mais do que normativa simplesmente, é fundamental, na medida em que transcende os elementos realizáveis de que fala Hesse, pois tem base compromissária na aceitação democrática e geral da sociedade.
Portanto, é na Constituição, vontade geral, de onde se origina a fonte do Direto no Estado Democrático, não por recurso retórico ou estilístico, mas porque a norma-compromisso reproduz esse pacto baseado em elementos fundamentais da República.
A força fundamental da Constituição não encerra, assim, uma idéia simplesmente formal, mas o reconhecimento das proposições formal, material e substancial de Constituição.
De posse desta noção, compreendo os Direitos Fundamentais como compromissos que encontram sua expressão no direito objetivo, mas que não se reduzem a singela vontade do Estado, senão expressão de soberania do Povo, este concebido como o conjunto de pessoas ativas no processo eleitoral existente, mas com participação transcendente ao período de eleições.
Outra não será a razão contida na previsão de que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” (art. 5°, § 1° da CF).
A inserção dos Direitos Fundamentais em textos permanentes é obra do aparecimento da Carta das Nações Unidas. Daí evolui a noção de universalidade, impondo aos Estados adotarem nos seus textos positivos princípios que transcendem qualquer ordem jurídica positiva.
Podemos afirmar que os Direitos Fundamentais conseguem internacionalizar as constituições, porque fazem surgir normas positivas constitucionais, que se encontram universalmente aceitas pela maioria dos Estados Democráticos.
A vida, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, nesta compreendida a integridade física, intelectual e moral, todos são valores universais que ganham dimensão positiva enquanto elemento vinculante, mas que são apreensíveis independentemente da própria previsão expressa.
A Emenda Constitucional n. 45/ 2004 reforçou este entendimento ao inserir no mesmo artigo 5o dois parágrafos (3o e 4o) em que prevê a incorporação de tratados internacionais sobre direitos humanos com “status” de Emenda constitucional e a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, norma de duvidosa sanidade constitucional.
Assim sendo, os Direitos Fundamentais recebem a qualificação de Direitos Universais, porque válidos enquanto essência da própria pessoa desvinculada de origem, sendo postos como enunciados normativos para limitar a relação existente entre o Homem e o Estado.
Sob estes aspectos pode-se considerar que houve avanços no processo de constitucionalização da sociedade pós-64, conquanto aqui e acolá (em fenômenos já identificados) possamos perceber, nitidamente, fatores de retrocesso que necessitam da eleição de um órgão com a atribuição de sopesar a Constituição, dando-lhe contornos de valoração ética mínima para que a sociedade, livremente, possa compreender a necessidade de sentir-se vinculada sentimentalmente à Constituição.
A força fundamental da Constituição no Estado Democrático de Direito, à primeira vista, pode transparecer uma construção semântica óbvia e exaustiva em si mesma.
Nós mesmos (e o pronome aqui inclui do estudante de Direito ao advogado e os membros das demais carreiras jurídicas) instintivamente falamos em Constituição atribuindo-lhe rótulos que transitam desde Norma Fundamental até Lei Maior. Lei das Leis, Magna Carta Constitucional “Magna Charta”, Norma Suprema, etc. Isto sem falar nos fetiches latinos que estão a reproduzir da “Lex Mater” até “Norma Normarum”.
E quanto mais expressões identificarmos mais nos depararemos com uma constatação que não se põe à critica porque, nós juristas, por um excessivo pendor bacharelesco, construímos um mundo em que advérbios, pronomes, verbos e suas locuções ganham requinte postos em sua redoma, como se o vocábulo “destarte” tivesse uma força emblemática de tal natureza que tornasse mais jurídico o fato ou a sua narrativa. E por que será que fazemos isso? Por que será que temos essa tendência? Simplesmente porque entendemos que o útil ao exercício da arte jurídica está em dar a coloração jurídica aos fatos pela linguagem rebuscada, como se o rotulo desse alguma densidade ao Direito.
Digo-lhes que não deve ser assim meus caros. Enquanto não houver a consciência de que a construção do Direito decorre de dramas pessoais, fonte das angustias que nós nem nos deparamos com vagar, permaneceremos nessa ciranda que é o quotidiano do Poder Judiciário. Peças imensas, pareceres herméticos, sentenças exibicionistas, tudo em nome do requinte vocabular. Falando claro: Do “juridicez” e do “informatiquêz”. É a cultura do “Control T”, “Control C”, “Control V” que torna a muitos violadores contumazes do direito autoral.
Dito isto, examinemos nossa postura diante da Constituição da República. Ela ordena a Federação, mas ela é Constituição da República. E isto é um ponto fundamental para compreendermos que a linguagem determina a prescrição jurídica, sem exigir, por óbvio, uma forma que traduza apenas o fetiche do operador do Direito, conforme já mencionei.
Vamos construir um conceito de Constituição. Vejam bem, proponho a construção de um conceito, não de uma definição, porquanto não pretendo confinar a concepção de Constituição nos limites da moldura da definição. Não pedi ao piloto um desenho de clausula (reportando-me ao pequeno príncipe).
Constituição no nosso entendimento encerra a idéia de um documento formalmente jurídico, materialmente político, substancialmente de natureza compromissaria.
Ao examinarmos a Constituição, como as demais normas do ordenamento jurídico, constatamos que o Direito objetivo se expressa através de normas (alguns preferem aqui a palavra regra) enunciadas de forma articulada. Isto é a Constituição formal de que falo. Não apenas o que esteja nela escrito, mas também o modo como enunciado.
Ao apreciar os enunciados republicanos, federativos, político-administrativos, de competências legislativas, de separação dos poderes, aí estou a falar da Constituição material, pois essas normas (relembro que alguns preferem a palavra regra) encerram afirmações fundamentais que contêm declarações que não se constituem em enunciados retóricos, mas desembocam em compromissos de natureza essencial.
Sob pena de invertermos a lógica de toda a teoria da supremacia constitucional, como, aliás, acontece diariamente pelo Brasil a fora, é necessário tomar consciência de que a idéia de supremacia não é semântica, mas fundamento que dá força à Constituição e validade às normas inferiores.
Entendo, assim, que ordenamento é a organização legislativa vigente. E com este entendimento é que constato que inúmeras vezes ações judiciais em torno de indenização por danos morais lançam-se a discutir a previsão codificada, para, então, finalizar com a celebre afirmativa de que “tudo consoante previsto na Carta Magna”.
Este é um exemplo em que a norma inferior tem a pretensão de ser válida isoladamente, desembocando na Constituição como se houvesse assim uma espécie de “toque final”, o último confeite posto no bolo de casamento. É buscar o fundamento fora do elemento fundante. Isto é teratologia pura, mas nos vemos diariamente esse tipo de entendimento, que não está confinado às petições dos advogados, sendo objeto de pareceres e sentenças à profusão.
O fundamento constitui-se em elemento cuja compreensão não pode ser obra apenas de cientistas, mas de todo operador do Direito, sendo, por isso, ultrapassada a idéia de que a Constituição retórica é bastante para um arrazoado servível ao foro.
Pensando assim, é preciso ter em mente que a percepção do que a Constituição contém como fundamento encontra na alteração constitucional (Emenda 45/2004) a exigência, mais do que nunca de atenção às novas fontes que deverão ser objeto de estudo. Refiro-me aos dispositivos inseridos no artigo 5o, quais sejam, o inciso LXXVIII e os parágrafos 3o e 4o do artigo 5o da Constituição da República.
A EFETIVIDADE: Avanços e retrocessos.
Por efetividade compreendemos o resultado verdadeiro do enunciado, sem que signifique, simplesmente, antítese do falso, diferenciando-se, assim, da simples eficácia, porque esta considera o elemento jurídico-formal de forma privilegiada.
O efetivo aqui indaga sobre a efetiva aplicação da norma, nisso coincidindo com a eficácia. Entretanto, não se trata de saber da aplicação da norma simplesmente.
Dirão os normativistas que a norma pretende apenas gerar uma hipótese dentro de um critério lógico-jurídico. Por outras palavras, a proposição normativa é ato de dever–ser, sem a previsão de efetiva aplicação, afinal, o jurista não pratica a quiromancia.
Creio que a noção de efetividade de direitos é indissociável do efetivo conhecimento. Não basta, portanto, instituir-se a norma. É inapropriado aos preceitos fundamentais o enunciado de que a ninguém é dado descumprir a lei alegando desconhecê-la.
Os Direitos Fundamentais aparecem na Constituição Federal como preceitos fundamentais, portanto, são elementos cujo conteúdo transpõe qualquer ficção jurídica, sob pena de tornarem-se inúteis as previsões ali contidas. E é exatamente em função desse status que se pode falar em força vinculante dos Direitos Fundamentais. Nem são regras de etiqueta, nem muito menos adornos de textos eruditos. Disso, também, nos dá notícia JOSÉ RENATO NALINI[10]:
“Seu enunciado não representa mera proclamação retórica, desprovida de intensidade jurídica. Ao contrário, verifica-se mesmo uma força expansiva e atraente dos direitos fundamentais, cuja manifestação mais nítida é o princípio da efetividade. Sempre que o operador se encontre diante de um direito humano, deverá adotar a orientação no sentido de sua efetiva aplicação e não dificultá-la. É aquilo que já se chamou impulso antiformalista e se refletiu em flexibilização nos prazos e nas formas procedimentais, tudo com vistas à substância dos direitos em questão”.
Mas efetividade, já se disse, depende de conhecimento da própria Constituição, que, muito embora se exteriorize sob a forma jurídica, é, sem dúvida, documento político que pretende (ao menos deveria) dirigir-se, com clareza suficiente, a todos os homens e mulheres.
A Constituição Federal, já se disse antes, possui disposição acerca da difusão de seus preceitos, consoante está previsto no artigo 64, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Na realidade, há por traz dessa inércia a mesma postura frente à Educação no Brasil. É conveniente não educar, porque a informação pode ser dirigida. É cômodo não ampliar o conhecimento da Constituição, porque assim as cobranças serão limitadas aos bens básicos, mercadoria que se revela moeda forte de troca em épocas eleitorais.
Veja-se, por exemplo, o direito de propriedade, que trata da manutenção, mas não abrange o acesso. E o direito reservado às entidades sindicais, quase sempre objeto de censura pela interpretação jurisprudencial? E o atendimento médico-ambulatorial, enquanto direito social? E o voto obrigatório?
Todas estas indagações nos fazem contrapor os conceitos de disposições declaratórias e disposições assecuratórias, fazendo-nos crer que a efetividade não se pode encontrar apenas no âmbito jurídico, afinal, o problema de ordem sócio-política frustra as expectativas de muitos.
A sociedade tem se preocupado muito mais em destacar o homem-indivíduo, porque o sucesso passou a ser sinônimo de exclusão, enquanto o homem membro de uma coletividade passou a ser mais um número estatístico.
Assim, enquanto não houver o efetivo conhecimento da Constituição (dando-se cumprimento à regra de difusão do ADCT, art. 64) aqui mencionada, continuaremos falando em eficácia e aplicabilidade dos Direitos Fundamentais, mas nunca chegaremos à integridade da cidadania, e, por conseguinte, à capacidade de respeitar a dignidade da pessoa humana.
CONCLUSÃO:
Devo dizer que sob o aspecto formal a Constituição é o conjunto de disposições objetivas eficazes, porque alcança o propósito contido nas normas que lhe são próprias.
A efetividade depende, por seu lado, do conhecimento multiplicado do próprio texto constitucional, hoje reservado apenas a uma escassa minoria que teve acesso à escola. No conhecimento reside a valoração e, por conseguinte, a capacidade de construir um sentimento constitucional que torne a Constituição objeto de guarda consciente e aplicabilidade integral.
Não resta dúvida que os avanços nos Direitos Fundamentais foram significativos, notadamente diante da Constituição de 1988, cuja essência democrática denota uma nova esperança.
Se por um lado os meios processuais dilargaram-se na Constituição Federal, como mecanismos de vigilância e controle do Poder Público, por outro, instrumentos como a re-introdução do foro privilegiado é um passo atrás na efetivação dos direitos.
A própria Ação Declaratória de Constitucionalidade importa em retrocesso, pois impõe frontais violações ao poder constituinte derivado, deixando ao órgão de controle, um colegiado reduzido e escolhido com base em critérios objetivos nitidamente enfraquecidos pela ação política, a função legislativa positiva.
O STF tem recentemente demonstrado uma postura mais determinada em torno da Constituição Federal. Oxalá não seja apenas o foco dos refletores que imponha o desejo transitório de efetivação constitucional, como a telenovela que passa e apenas seus personagens ficam.
É impositivo a instituição de uma Corte Constitucional exclusiva, papel que deve ser urgentemente atribuído ao Supremo Tribunal Federal.
Não resta nenhuma dúvida que ao desenhar a caixa em que dizia conter um carneiro o piloto impôs ao pequeno príncipe a idéia de completude sistêmica, embora tenha observado que os carneiros comem arbustos, o que denota a retro-alimentação do sistema que, sob esse aspecto, é aberto sem sombra de dúvidas.
A construção do sentimento constitucional como resultado da ampliação do plano de conhecimento eleva à categoria de desejo constante o valor da Constituição, que passa a dispor de um valor simbólico muito mais significativo e, por decorrência, eficaz.
Finalizo dizendo que o sentimento constitucional é a alternativa de consciência democrática, embora possa sofrer censura dos mais abalizados. Contudo, ainda com o pequeno príncipe, é fatal concluir que “as pessoas grandes são muito esquisitas”.
Muito obrigado.
*III Jornada Jurídica da Procuradoria Geral do Estado do Maranhão (07, 08 e 09/11/07).
[1] Teoría de la constitucion. Barcelona: Editora Ariel S. A. 1986, p. 200. Tradução nossa.
[2]Do espírito das leis. São Paulo: Ed. Martins Claret, 2004, p. 181.
[3] Comentário contextual à constituição. 3ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional 53, de 19.12.2006. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 29/30.
[4] Art. 5o [...]
[...]
IV – É livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato.
[5] Vinícius Ferreira Laner, apud Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Liberdade de informação e direito difuso à informação verdadeira. Rio de Janeiro : Renovar, 2003, p. 92.
[6] Pilar Cousido, apud Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, ob. Cit., p. 100.
[7] Fragmento (sobre o Poder Constituinte do Povo. São Paulo: Ed. Revista dos tribunais, 2004, p.26.
[8] Reforma do judiciário e direitos humanos, in A reforma do judiciário analisada e comentada. TAVARES, André Ramos et ali. São Paulo: Editora Método, 2005, pp. 67/81.
[9] O art. 4o, § 4o da CF: Dois retrocessos políticos e um fracasso normativo, in A reforma do judiciário analisada e comentada. TAVARES, André Ramos et ali. São Paulo: Editora Método, 2005, pp. 107/119.
[10] CONSTITUIÇÃO E ESTADO DEMOCRÁTICO, Coord. Hélio Bicudo. São Paulo : FTD, 1997, p. 79.
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