A CONSTITUIÇÃO DOS AFLITOS*
Convidado por esta Instituição para proferir esta palestra, desejo, inicialmente, consignar os meus agradecimentos pela lembrança. Já faz algum tempo e estive aqui, na primeira Aula Inaugural do Curso de Direito, para falar sobre a EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. Hoje lhes trago o tema A CONSTITUIÇÃO DOS AFLITOS, com o qual pretendo concitar-lhes à reflexão.
O estudo do Direito Constitucional ganhou espaço no Brasil seguramente em face do advento da Constituição da República de 1988. Assim prefiro denomina-la, em contraposição ao artificialismo de Constituição Federal, forma de Estado instrumentalmente compreendida apenas, já que se vive na República, sem qualquer sentimento federativo, aliás.
Com ela (a Constituição) criou-se uma grande expectativa de dirimir conflitos já sedimentados no longo período de ditadura militar. Nela foram inseridos direitos jamais vistos na história deste país, como se fosse um desejo de resgate, de explosão de angústias e vontades sufocadas.
A Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1/1969, submeteu a ordem jurídica a mecanismos artificiais de controle, dentre os quais o ideológico, através dos instrumentos que asseguravam eficácia à Lei de Segurança Nacional, via que pavimentava a “legitimação” (ponho a palavra entre aspas) para a instauração de averiguações (os Inquéritos Policiais Militares) aos quais eram submetidos todos aqueles que se insurgissem contra o sistema vigente.
Trouxe consigo, ainda, do Direito Italiano, o decreto-lei, como instrumento que suprimiu, em grande parte, a ação ordinária do Congresso Nacional.
A Constituição daquela época, com roupagem formal precisa, deve-se reconhecer, escorreita, consignava a decisão política fundamental daqueles tempos sombrios, Nesse particular não foge à regra do poder constituinte derivado em cada momento histórico. Havia um sentimento contido pela força das armas. E hoje, haveria um sentimento contido pela força da lei? Que Estado possuímos? Estado de Lei ou Estado de Direito? São indagações que se pretende responder, ou, ao menos, trazer algumas reflexões que nos inquietam.
Pretendo falar-lhes de Constituição em dimensão mais do que formal. Falo-lhes de pacto, pois não consigo compreender a Constituição senão por esse viés. Ela é um pacto compromissário, de essência humanitária, com natureza política e forma jurídica. É assim que a vejo, é assim que a sinto.
Nesse particular, e porque é o tema central de minha tese de doutoramento, desejo registrar que já em 1612, precisamente no dia 1º de novembro, aqui nesta São Luís foram escritas as LEIS FUNDAMENTAIS DO MARANHÃO, cujo propósito pactual era instituir uma colônia francesa, com normas comportamentais que hoje vemos nos principais documentos da história do constitucionalismo contemporâneo. Já ali se falava de meio-ambiente, propriedade, direito penal, direito pessoal, integridade física etc.
Já bem antes disso, todos sabemos, a “Magna Charta” de João Sem Terra, inobstante sua extensão limitada, consignava preceitos que serviram de inspiração às normas que fundamentaram a sociedade moderna.
A Constituição, ora como documento sociológico, com a conjugação de anseio popular e instrumento formal (Lassalle), ou como resultado de uma decisão política fundamental (Schmmidt), ou, ainda, como instrumento jurídico (Kelsen), convergiu para o consenso, que é um documento com propósitos orgânicos fundados não mais no sobrenatural, mas na racionalidade.
Constituição é sinônimo de compromisso, de convergência, não de unanimidade, nem de uniformidade, mas de núcleo de vontades democraticamente representadas, como, aliás, no caso da Constituição da República, o diz o parágrafo único do artigo 1º.
Com base nesse perfil de representatividade a Constituição de 1988 inaugurou um cenário de ampliação de direitos e garantias jamais visto na história do Brasil. São setenta e oito incisos e quatro parágrafos só no artigo 5º da Constituição de 1988. Desses dispositivos são derivadas inúmeras outras previsões que pretendem a efetivação da Constituição.
Ocorre que não se pode construir a efetividade sem que se tenha consciência dos pilares em que edificada a Norma Fundamental.
Nossa Constituição é concebida sobre os fundamentos da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. São princípios, compreendidos dentro de sua dimensão substancial, como verdades, valores, ideais, convencimentos eleitos como viga de uma estrutura. Sem ela (a estrutura) desaba o edifício constitucional. São princípios constitucionais fundamentais, não apenas princípios gerais de direito constitucional, como bem destaca José Afonso da Silva[1]:
“Os primeiros integram o direito constitucional positivo, traduzindo-se em normas fundamentais, normas-síntese ou normas-matrizes [...] os princípios gerais formam temas de uma teoria geral do direito constitucional, por envolverem conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional”.
Em breve síntese dessa concepção poderíamos dizer que nada pode ser concretizado em termos de dispositivos constitucionais sem que haja transitado por essa estrutura. Vale dizer: não há sociedade livre e justa sem respeito à dignidade da pessoa humana. E é precisamente com ênfase na falta de respeito à dignidade da pessoa humana que construo estas idéias.
Ser digno é ter não apenas o direito, mas o acesso aos meios de produção de um Estado (refiro-me ao Brasil), a sua riqueza mais expressiva que é a potencialidade de produzir para seu próprio povo. Nisto não está nenhum gesto de clausura, isolamento ou de xenofobismo, mas uma prioridade que precisa ser abraçada pelos dirigentes deste país: ou há o compromisso de livrar esta sociedade ou não haverá sociedade para ser libertada, senão beligerantes em constante conflito civil, com o risco de desenvolverem-se os discursos ideológicos que são capazes de farta produção, inclusive de teratologias jurídicas esfuziantes.
Quando assistimos a segregação de pessoas em locais em que as políticas públicas são ineficientes, para não dizer inexistentes, é sinal que o Estado está ameaçado de ser substituído pelos grupos marginais que aterrorizam a sociedade.
A violência, então, passa a ganhar dimensões insuportáveis. Não apenas a violência física, cotidiana e incompatível com a integridade física e moral, mas a violência legal.
O Estado Legal, primeira fase do denominado Estado Constitucional, possui sua importância na história da civilização. Do absolutismo monárquico, com fundamentos teocêntricos, passou-se ao estado das leis, como produto do racionalismo iluminista, mas desembocou-se no Estado Social como alternativa ao legalismo opressor.
A lei nasceu para libertar, embora nesse objetivo oprima com sua força cogente, num mecanismo de limitação de espectros individuais em nome da vontade geral. Legislar, aplicar a lei e interpreta-la, contudo, não se divorciam da necessidade de observar a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana não prescinde da solidariedade, objetivo da República, como prevê o artigo 3º da Constituição.
Ora, como se pode compreender uma Constituição efetivada sem amparo nas mais incipientes regras que lhe compõem? Como suportar-se um julgamento midiático (o chamado tribunal da mídia) cotidiano, com linchamentos morais irreparáveis? Em nome do direito de informação ou da liberdade de expressão? Em nome de interesses econômicos ou políticos sutilmente inseridos em disputas regionais da Federação? Que ponderação de interesses será possível para dirimir esses conflitos?
Recuso-me a aceitar esse tipo de compreensão, de indiferença com a restrição ilegal da liberdade, com a conivência com o abuso de autoridade em quaisquer de suas formas, de arrogância quanto às aflições mais latentes.
A efetivação constitucional reside em apreender, compreender, desejar, cumprir e exigir o cumprimento da Constituição como um instrumento comum, sem as reservas de direitos a classes, senão aquelas especificamente necessárias e taxativas ao exercício de uma função.
Fala-se muito em impunidade decorrente de um procedimento penal ultrapassado, cheio de regras e desvios que tornam o tempo o maior inimigo da sociedade. É quando surge o discurso de ruptura com o sistema, através de alternativas inseridas em soluções construídas em juízos singulares. Pensa-se, com isto, que se está a fazer justiça.
Lembro que o regime político das sociedades contemporâneas é representativo. Isto nos diz nossa Constituição. Assim, a cada “solução mágica” (entre aspas mesmo) tem-se a substituição de mais de seiscentos congressistas, eleitos pelo povo, por um único juízo que, sem nenhum critério legal, ou com base na deformada interpretação dele, passa a legislar individualmente, confundindo o justificar o Direito com o justiçar a sociedade. Ser juiz, promotor, advogado, delegado, enfim, operador do direito, não é ser justiceiro.
Uma sociedade nesses moldes é o retrocesso, a volta à barbárie. Aflições são condições humanas que merecem e devem ser solucionadas com critérios objetivos, com as normas contratadas, mas com forte dose de sensibilidade, jamais pelo subjetivismo arrogante.
A deformidade da lei está na consciência dos homens, não bastando o tempo para torná-la inadequada. Fosse assim e a concepção do “habeas corpus” seria desnecessário, pois remonta à própria “Magna Charta” de João Sem Terra.
Entendo, meus caros, que a aflição de nós cidadãos tem guarida, também, na ausência de conhecimento do texto constitucional, sem que sequer percebamos isto. Justifico este entendimento.
Desde o advento desta Constituição de 1988 tem-se regra expressa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (artigo 64) com o seguinte teor:
“A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração pública direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil”
Quantos de nós aqui tínhamos conhecimento desta regra simples, mas de conteúdo fundamental para a completa efetivação da Constituição?
Não pretendo com isto comparar esta disposição constitucional com aquela ficção jurídica da Lei de Introdução ao Código Civil que veda o desconhecimento da lei, mas desejo, sim, firmar como entendimento que a Constituição necessita ser incluída como matéria a ser estudada em todos os níveis da educação formal e informal.
Portanto, não basta ter-se a norma, sem que sua dimensão seja compreendida e cumprida por todos.
Quando um policial excede do seu poder, violou a Constituição tanto quando um criminoso aponta uma arma ao cidadão indefeso. Quando um juiz sentencia com o desejo de beneficiar, infundadamente, uma das partes, equipara-se ao delinqüente, ao justiceiro, pois todos violam uma norma comum: a Norma Fundamental.
Desejo ratificar a todos aqui presentes que o Estado das Leis é o Estado da aflição, sempre que a sua existência vilipendiar a dignidade da pessoa humana.
Respondendo os questionamentos que fiz, ou pelo menos tentando responde-los, vejo um sentimento de opressão legal não apenas no Brasil, na dimensão que o autoritarismo tem tomado no continente, o que não exclui o Brasil. Há lei?, pergunta o jovem agente público, então posso, responde a imaturidade arbitrária.
Possuímos um Estado Legal, sem dúvidas, mas ainda caminhamos a passos lentos para a efetivação de um Estado Democrático de Direito.
Gostaria muito de poder falar-lhes, nesta noite, da efetividade dos direitos de que falei há tempos atrás. Quisera pudesse dizer a todos aqui o que disse naquela noite. Infelizmente não posso.
Estado das Leis existe para libertar os homens, nunca para oprimi-los. Estado de Direito existe para terminar a aflição de todos, com a consecução de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Obrigado.
* Palestra proferida na Faculdade SEST em 23 de maio de 2007.
[1] Comentário contextual à constituição. 3ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional 53, de 19.12.2006. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 29/30.
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