segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Limpar a ficha e sujar a Constituição?



No dia 6 de julho publiquei no num “site” da INTERNET (“write 4 net”) um artigo intitulado “Quatro pontos e um argumento: A ficha limpa?”. Nele abordei alguns aspectos da Lei Complementar 135/2010, que ficou conhecida como a “Lei da ficha limpa”.

Naquela oportunidade fiz considerações que julguei pertinentes, pois consentâneas com a ordem constitucional brasileira, cuja mais grave e visível instabilidade reside na ausência de formação de um sentimento constitucional, assunto ao qual tenho me dedicado há algum tempo.

A televisão, com sua forma irrefutável, trouxe a público o sentimento expresso em um milhão de assinaturas que deram suporte ao projeto de lei complementar, hoje devidamente aprovado. Tornou-se lei complementar e vige com a presunção de que desfruta qualquer norma oriunda do Estado de Direito: a legitimidade.

A lei da ficha limpa é legítima, nasceu do povo, através da manifestação colegiada passou pelo procedimento legislativo e pelo controle político de constitucionalidade. Portanto, possui legitimidade originária e presumível constitucionalidade.

O TRE do Maranhão em nota que vi veiculada em um blog local asseverou que “deixou de aplicar a Lei Complementar nº 135/2010, preferindo a aplicação do princípio da irretroatividade da Lei mais severa, em cumprimento às regras da Constituição Federal, especialmente à coisa julgada, prevista no inciso XXXVI do seu artigo 5º”. E isto em função da repercussão que tomou a notícia merecedora, alias, da crítica sempre ácida (mas nem por isso inverídica) do jornalista e cineasta Arnaldo Jabor.

Não me centro, aqui, em responder a crítica do jornalista. Com ele concordo em alguns pontos. Muito menos pretendo criticar uma decisão colegiada do TRE-MA (onde, aliás, servi por dois biênios), conquanto a cátedra me garanta esse direito, desde que reserve urbanidade à linguagem e preserve a integridade moral e intelectual de cada um dos magistrados que ali tenham assento. Não posso, contudo, permanecer silente, ao tempo em que vejo manifestações proliferarem contra a decisão do TRE-MA, como se houvesse uma verdadeira desobediência, um acinte, ou, quem sabe até, um desafio às instâncias judiciais superiors deste país.

Por isso, reproduzo o que disse na mídia eletrônica, com o desejo de contribuir para o debate.

A aprovação da Lei Complementar 135/2010 apelidada de "ficha limpa" tem merecido as mais diversas manifestações pelo país afora, mormente após as manifestações do Tribunal Superior Eleitoral em resposta às consultas que lhe foram formuladas.

Antes que se mergulhe no senso comum de dizer que quem apresentar argumentos contrários não se compraz com o sentimento nacional de moralização, desejo registrar breves considerações que me ocorrem, partindo da asserção de que sou, sim, a favor da moralização da política. Portanto, o que escrevo nada tem de oposição à "ficha limpa", mas tem tudo a ver com a Constituição da República Federativa do Brasil e a formação de um sentimento que a faça perdurar. E farei de forma direta, para que não mergulhe no "juridicêz" habitual dos operadores do Direito.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que a Lei Complementar 135/2010 (ficha limpa) atinge o processo eleitoral em cheio em curso, portanto, encontra como óbice o princípio da anualidade previsto pelo art. 16 da Constituição.

Em segundo lugar, a lei aprovada tem cláusula de vigência para o futuro, sem que possua expressa disposição de retroatividade, o que, por si só, só seria admissível com a interpretação benéfica, já que não existe norma que retroaja para prejudicar.

Em terceiro lugar, é preciso que nós tenhamos a coragem para afastar o discurso populista da vontade geral porque foram um milhão de assinaturas reunidas para a proposta legislativa.

Ora, é a Constituição que prevê as garantias contidas no princípio da segurança jurídica, no qual está a coisa julgada, razão por que a interpretação do TSE é absolutamente destituída de constitucionalidade sob essa perspectiva. Como se falar em aplicar a lei inclusive àqueles que já tiveram seus processos julgados? E àqueles que tenham perdido o mandato?

Retroagir para prejudicar, sem dúvida, foi a alternativa escolhida, estranhamente, pelo TSE.

Em quarto lugar, é preciso compreender que a reunião de um milhão de assinaturas, conquanto represente uma aspiração coletiva, se adotado como argumento, implicará na submissão da maioria pela minoria, o que significaria a ditadura imposta a maioria.

Ora, as normas que compõem o princípio da segurança jurídica estão na Constituição que foi elaborada pela Assembléia Nacional Constituinte, portanto, constituída pela maioria do colégio eleitoral do país. Como, então, submeter a maioria a um milhão de pessoas em nome de um clamor social?

É conclusivo, portanto, que a Lei Complementar 135/2010 é constitucional, mas sua aplicação para o presente pleito viola o princípio da anualidade previsto pela Constituição.

Do mesmo modo, é conclusivo que ao estabelecer efeitos retroativos à norma o TSE ultrapassou o limite que lhe é reservado pela própria Constituição e pelo próprio Código Eleitoral, pois suas Resoluções são ato-regra, espécie de norma que difere da lei. E ao estabelecer efeito retroativo não previsto na própria Lei Complementar de modo direto e inequívoco o TSE violou a Constituição.

Por último, e não menos importante, é digno de registro que a comoção geral não possui força capaz de afastar a decisão fundamental da Assembléia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição.

Uma Constituição ou se altera pelo devido processo legislativo ou nunca se terá consolidado um sentimento constitucional.

Como disse, não responderia às criticas no editorial do jornalista, pois muito do que disse procede. Nem criticaria o TRE-MA. Este, ao contrário, saudou a Constituição como quem desejasse despertar toda uma gente para a formação do sentimento constitucional.

Tomara que outros tribunais tenham a mesma postura, pois todos queremos representação política limpa, mas não se pode sujar as regras constitucionais como forma de agradar um discurso político midiático.


Artigo publicado no Jornal O Imparcial, de 1/08/2010, p. 5.

Um comentário:

Unknown disse...

Parabéns pelo artigo e blogue.
Apesar de não ser da área, sou muito curioso a respeito do Direito.
Tomei a liberdade de copiar o artigo e difundi-lo na rede através de meus contatos.

Sou daqueles que acreditam na Justiça desde quando ela seja cega, paciente, cumpridora dos trâmites legais e justa.

Grande abraço.